David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

domingo, 29 de março de 2015

O beija-flor apaixonado

Os beija-flores saem dos ninhos e pairam de flor em flor recolhendo o néctar. Flor aqui, flor ali, lá vão eles a conseguir aquele voo de helicóptero em manobras, voando parados, estendendo a língua comprida com que recolhem o doce alimento. Aquele beija-flor no entanto era diferente. Um beija-flor albino que nunca saltitava de flor em flor. Quando saía do ninho era sempre para ir ter com a mesma flor azul. Nunca escolhia outra. Só se alimentava daquela flor. E mesmo quando não se estava a alimentar pairava sobre ela com ar embevecido. Às vezes tocava-a com o bico como se a beijasse. A verdade é que aquele beija-flor branco estava apaixonado por aquela bela flor azul. Por isso não queria nada com as outras. Para ele era como se não existissem. Só se alimentava daquela flor e não deixava mais nenhum beija-flor aproximar-se dela. Mas as flores são seres efémeros, mais do que os beija-flores, e aquela bela flor azul não era excepção. Por isso um dia começou a murchar. E com ela o coração do beija-flor albino. Mas ele não se deixou abater. Começou a mergulhar no lago e a espanejar as asas molhadas sobre a flor para ela recuperar a frescura. E a comer o mínimo possível para não a enfraquecer mais. Durante um tempo isso resultou. Mas como o avanço do tempo é inexorável a flor azul todos os dias murchava mais um pouco. Isso, porém, não abrandava a paixão do beija-flor. Pelo contrário cada dia se sentia mais apaixonado e lutava com mais força pela sobrevivência da bela flor azul. Os outros beija-flores que inicialmente faziam troça dele, agora admiravam a sua tenacidade e a força daquela paixão. Começaram a ajudá-lo levando-lhe alimento e gotas de água para refrescar a flor. A natureza ao ver aquilo condoeu-se e poupou a bela flor azul e ela reviveu. E com ela o beija-flor albino que voltou à sua rotina de sempre a alimentar-se e a cuidar da sua flor. Ainda hoje, naquela floresta, se pode ver um beija-flor todo branco que paira sempre sobre uma bela flor azul e às vezes se aproxima dela como se a beijasse.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Luzes

Está meio adormecido. Amodorrado. Cada vez fica mais tempo assim. Chegou cedo. Chega cada vez mais cedo pois nada mais tem para fazer fora dali. Aliás, quase mora ali. Aguarda a hora. Quando ela chega desce as escadas com andar vacilante. Os anos pesam. Ofega um pouco. Aceita a mão que lhe oferece ajuda nos últimos degraus. Agradece com voz trémula e cambaleia até aos panos. Quando chega a sua vez, entra. E quando passa as bambolinas é outro que surge debaixo das luzes. Passo firme. Voz segura, bem colocada e que se projecta longe. Percorre o palco com vigor. Fala energicamente. O acto decorre com intensidade crescente e a derradeira cena é toda dele. Todo ele cresce e vibra. Há quem jure que ele, nessa altura, até emana luz. Depois da última fala mantém a pose em suspenso. Enorme. Lentamente expira o ar que lhe enche os pulmões. Cai o pano.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Quando vieres a Lisboa

Quando vieres a Lisboa vamos beber um copo. Vamos pôr a conversa em dia, que há tantos anos não falamos. Vamos ser outra vez os amigos que éramos no tempo da faculdade. Quando vieres a Lisboa vamos esquecer que temos mais trinta anos, mais trinta quilos e não sei quantas toneladas de ilusões perdidas. Vamos dizer que estamos iguais apesar dos cabelos brancos ou da falta deles. Vamos voltar a sonhar o mundo. Quando vieres a Lisboa.

sábado, 21 de março de 2015

no teu olhar há um pássaro assustado
há muitas noites varadas
há mil histórias por contar
no teu olhar há uma busca por carinho
uma flor que abana ao vento
e quase sai a voar
no teu olhar há um mar
de outonais folhas caídas
de mil ilusões perdidas
ou pela vida embargadas
no teu olhar há esperanças desenganadas
outras tantas a florir
e um pássaro assustado
que para enfrentar o medo
não quer parar de cantar

sexta-feira, 20 de março de 2015

O medo da felicidade

Há pessoas que parecem ter medo de ser felizes. Que, talvez por terem sofrido antes, quando estão bem desconfiam da fartura e convocam os fantasmas mais negros para lhes estragar o dia ou amargurar a vida. Que em tudo vêm sinais de desesperança ou de cataclismos. Eu, que preocupado militante me confesso, gosto de antecipar todas as eventualidades. Nunca penso que tudo vai correr pelo melhor e preparo-me para o que possa correr pior. Mas quando estou bem aproveito o momento e gozo ao máximo os instantes de felicidade. Se sinto sombras a chegar mando-as para bem longe. Para infelicidades e tristezas já chegam bem as palermices dos outros e as vezes em que a vida nos troca as voltas.

terça-feira, 17 de março de 2015

Entre mim e a camioneta

Entre mim e a camioneta vai um passo de coelho. Um salto antes da partida e ala que lá vou eu. Adeus campo, adeus serras, que vou daqui sem saudades ainda que venham depois. Adeus mãe que me proteges mas me impedes de ver mundo. Adeus pai que me prendes à mesma miséria que herdaste. Aqui não há horizontes e os que há são sempre iguais. Já lá vem a camioneta, já está a entrar no largo. É hoje que vai parar, o dinheiro está no bolso. É só entrar e partir. É hoje que vou embora, vou só esperar o momento. Tem de ser no tempo exacto para ninguém me impedir. É agora? Espera um pouco. Espera um pouco. É agora! Demorei, já vai a andar. Mesmo a correr não a alcanço. Para a próxima será. Entre mim e a camioneta vai um passo de coelho.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Indutor de ilusões

Os governos da maioria dos países do mundo estão a dar ordem para a fabricação e distribuição gratuita de um medicamento denominado genericamente como Indutor de Ilusões. O produto, que será apresentado em comprimidos e xarope, funciona através de um mecanismo que permite que as pessoas que o tomam busquem na memória a sua experiência de vida mais agradável e a vivenciem como se a estivessem a viver efectivamente, enquanto desempenham normalmente as suas funções. Apresentado inicialmente como um supressor de stress, rapidamente se verificaram as suas potencialidades no aumento da felicidade da população em geral, com evidentes vantagens económicas, quer na redução do consumo dos ansiolíticos tradicionais, quer na de muitas outras drogas associadas ao desgaste provocado pela actividade profissional. Trará benefícios evidentes a pessoas com trabalhos desagradáveis e/ ou repetitivos, visto que podem continuar a cumprir as suas tarefas sem o óbice do cansaço ou repulsa, o que provocará aumento de eficácia e produtividade. O seu consumo será igualmente vantajoso em pessoas com vidas monótonas e sem objectivos. Os governos estimam também enormes poupanças, quer materiais, quer de vidas humanas, com a redução de acidentes de trabalho e de viação. Elevam-se, no entanto, muitas vozes discordantes que acusam ser esta uma estratégia de perpetuação no poder através da alienação do povo, que se sentirá artificialmente feliz, mesmo que a realidade seja precisamente o oposto. Ao que os governos contrapõem que se trata apenas de protestos isolados de pessoas que, assim que experimentarem os efeitos benéficos do produto, terminarão espontaneamente os protestos.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Dói tanto

Para esta dor não há analgésico. E dói tanto. Quando me dói a cabeça, a barriga ou uma perna, tomo um comprimido e lá acaba por passar. Mas esta dor que não sei se vem da alma se donde vem, que vem do mais profundo de mim e me aperta o coração e me revolve as entranhas, não passa com nenhum comprimido. Há quem se meta em drogas ou em igrejas esquisitas por causa de dores destas, mas eu sei que também não é remédio. A dor não passa. A única coisa que a atenua é o tempo, mas só a abranda, nunca a elimina. E tu já me tinhas doído tanto. Doeste-me quando estávamos juntos e nunca estavas. Doeste-me quando me atraiçoaste uma e outra vez. Doeste-me quando voltavas. E outra vez quando voltavas a partir. Doeste-me quando te mandei embora de vez. E tanto e durante tanto tempo quando fiquei sem ti. A bem dizer foi uma dor que lá se foi atenuando, devagarinho, mas nunca passou verdadeiramente. E agora voltou a doer muito quando te vi, uma sombra de ti próprio no corredor de um hospital. Doeu e de que maneira quando voltei a estar contigo mesmo se já te pressentia a morte nos olhos. E agora que morreste dói, dói. Dói tanto!

segunda-feira, 9 de março de 2015

O horror

Que fazer quando o horror nos invade uma vez mais a vida, mesmo que seja pelas imagens televisivas e notícias dos jornais? Que fazer quando sentimos o horror a instalar-se uma vez mais num qualquer canto do planeta, se é que alguma vez esteve completamente ausente? Que fazer quando vemos, ouvimos e lemos sobre o horror no presente do indicativo ou no pretérito perfeito composto e não em reminiscências do passado? Será que podemos ignorar? Será que não aprendemos já que o que está aparentemente longe depressa nos chega à porta? Que os factos da vida que nos doem diariamente, por dolorosos que sejam, nada são perante o verdadeiro horror? Perante essa besta descontrolada que é o horror real? De quantas mortes temos de saber para nos insurgirmos? Teremos de esperar por assistir ao espectáculo do horror com os nossos próprios olhos? Teremos de ouvi-lo com os nossos ouvidos e cheirá-lo com o nosso nariz para reagir, esperando nessa altura não sermos participantes e, portanto, demasiado tarde? Que esperamos para nos levantarmos unidos numa onda tão avassaladora que perenemente o extinga?

sábado, 7 de março de 2015

Normalidade

Eu tentei ser normal. Juro que tentei. Mas não consegui. Ou antes, tentei ser normal mas não gostei. Conseguir consegui, mas senti-me profundamente infeliz. Pelo menos aquilo a que os outros chamam normalidade. Que para mim aquilo não é normalidade nenhuma. Eu acho até que sou bastante normal. Não sou é normal pelos padrões deles. E se a minha anormalidade não chateia ninguém, ao contrário da normalidade deles, porque não hei-de eu ser como me apetece? É apenas a minha normalidade. E muitos só se sentem incomodados com a minha normalidade por não conseguirem ter uma normalidade deles, como eu tenho a minha. Assim preferem ser normais mas infelizes. Eu não sei se sou feliz. Sei é que não sou tão infeliz como seria se fosse normal.

quarta-feira, 4 de março de 2015

No Inverno somos todos girassóis

No Inverno somos todos girassóis. Mesmo os que em dias mais quentes, como eu, escolhem invariavelmente a sombra (não confundir com sombras que são uma coisa bem diferente) no Inverno correm em busca da primeira nesga de sol que aparece. Nessas alturas eu percebo o que sofrem os povos do Norte e por que razão, quando nos visitam, procuram o sol tão sofregamente e se deixam escaldar tão furiosamente. Quando ele aparece é ver-nos a todos, qual lagartos, sentados em esplanadas, bancos de jardim ou simplesmente a andar, de cara virada para o astro-rei a apanhar os tépidos raios e a vituperar qualquer nuvem que se atreva a encobri-lo. Não sendo plantas, parece que há em nós um qualquer fenómeno de fotossíntese que nos recarrega energias e anima. Não é só pelo calor e a luz. É uma necessidade mais primordial que ficou guardada no nosso mapa genético. Nos dias soalheiros de Inverno voltamos todos a ser adoradores do sol.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Recreio

Pum! Pum! Pum! Estás morto. Vai, foge! Pum! Pum! Pum! Ah! Ah! Yeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee! Apanha a bola! Camelo! Pum! Pum! Pum! Não acertaste! Pum! Pum! Pum! Não fui eu! Empurraste-me! Vais ver! Pum! Pum! Pum! Não me apanhas, não me apanhas! Pum! Pum! Pum! Uuuuuuuuuuuuuuuuuh! Oh, Páh!!! Pum! Pum! Pum! Olha! Lá, lá, lá, lá lá lá! Pum! Pum! Pum! Se te apanho, nem sabes!... Pum! Pum! Pum! Aaaaaaaaaaaaaaaah! Passa, passa! Pum! Pum! Pum! Pum! Pum! Pum! Trimmmmmmmm.