David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Os gigantes e os aerogeradores


Varo a bruma dos dias com inquietação. Da névoa surgem gigantes contra os quais ergo a minha lança de palavras. Dizem-me que são apenas moinhos, mas eu sei que são gigantes. Enormes colossos. Os outros riem-se de mim. Chamam-me dom queixote, porque me estou sempre a queixar de tudo, dizem. Não vês que são aerogeradores? Perguntam galhofeiros. Mas eu sei a diferença. Ao contrário deles li o Dom Quixote do Cervantes e sei que diz que confundiu moinhos com gigantes. Mas o que interessa é que lutou pelos seus sonhos. E eu sei que os aerogeradores estão nos montes e giram as pás conforme o vento. E que os que gozam comigo também só se deixam ir ao sabor do vento sem interrogações. Por isso não percebem a minha luta. A minha teimosia. Por que razão insisto em esgrimir a minha lança. E riem-se alarvemente, quixotes ao contrário, preferindo ver moinhos onde realmente estão gigantes.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Investidores precisam-se



Investidores precisam-se. Que invistam na felicidade própria e na alheia. Que invistam na igualdade e na fraternidade. Que invistam na liberdade e no amor. Investidores precisam-se. Que invistam na delicadeza e na bondade. Que invistam no brio e no rigor. Que invistam na honestidade e na verdade. Investidores precisam-se. Que invistam na tolerância e na aceitação das diferenças. Que invistam na ternura e na amizade. Investidores precisam-se. Exigem-se empenho e compromisso. Garantem-se benefícios imediatos e ganhos muito compensadores para toda vida.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ninguém é um só



Ninguém é um só. A todos nos aparecem pensamentos contracorrente. Aposto que mesmo àqueles que dizem só ter certezas. A quem nunca surgiu um se ou um mas do seu eu mais profundo? Assim de repente. Do nada. Sem nenhuma razão aparente. Dizemos muitas vezes que esses pensamentos nos vêm do coração, talvez por não lhes reconhecermos racionalidade. Ou pelo aperto que nele às vezes causam. Quase sempre. E depois lá fica a cabeça a magicar, emersa em cogitações e considerações, em intrincadas análises e negociações interiores, até chegarmos a um entendimento com nós próprios. Será isto a dialética? O que é não sei. Sei que esses diálogos interiores me enriquecem sempre, por mais perturbadores que possam ser. Por mais perda de tempo que pareçam quando volto ao fim aparentemente a pensar o mesmo. A única certeza que tenho é que isso faz parte da minha condição de ser humano.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

O silêncio



Nunca percebi as pessoas que fogem do silêncio. Que não o suportam. Que não conseguem viver sem ruído produzido por humanos à sua volta. Que ligam o rádio mesmo que não ouçam nada do que transmite. Para fazer companhia, dizem. Que levam aparelhagens para a praia em vez de ficar a ouvir a música das ondas. Ou para a floresta abafar o som do vento nas árvores e o canto dos pássaros. Gosto muito de música, mas quanto ela é tocada só para preencher silêncios, é apenas ruído. Nunca percebi as pessoas que preenchem o silêncio com palavras sem significado, como se ele as incomodasse, como se ele lhes pesasse intoleravelmente. O silêncio não é forçosamente um vazio. Um silêncio pode dizer mais que todas as palavras. E uma boa medida do amor, é quanto os silêncios do outro não nos pesam.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Um ruído na noite



A noite estava cálida e silenciosa. Nem o mar se ouvia, apesar de estar próximo. De sacada aberta e luz apagada por causa dos mosquitos ia-me deixando estar, meio a dormitar meio a meditar, recostado no cadeirão. Um ruído longínquo, no entanto, começou a perturbar o sossego. Uma espécie de arrastar sincopado que não consegui identificar e se foi intensificando. Despertei da modorra e apurei o ouvido. Nada mais se ouvia além daquele zap zap zap. O silêncio é coisa estranha em terra de beira-mar. Levantei-me e assomei à varanda. Na rua um grupo de umas quatro ou cinco mulheres corria, uma delas com uma criança nos braços, embrulhada num xaile, em direcção ao hospital ali ao lado. Era o arrastar das chinelas que provocava o ruído que ouvira. Iam no mais absoluto silêncio e com um ar de aflição estampado nos rostos. E foi esse silêncio que, em terra de grito fácil, mais me impressionou. Nem deram pela minha presença. Nunca soube que tinha a criança para ficarem tão aflitas, mas devia ser bem grave para irem tão caladas. Fiquei a vê-las afastar em direcção às urgências e voltei para dentro de coração apertado. Nunca mais esqueci aquele som.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Quando ela praça



Quando ela passa, a praça parece parar. Tudo aparenta ficar num estado de suspensão em que apenas ela se move. E como se move. Entra por um dos cantos e atravessa o largo em diagonal. Sem rebuço mas sem ostentação, antes de forma bem natural. Sempre no mesmo passo ligeiro, mas não apressado, e com um sorriso gaiato. O trajo sempre cuidadíssimo e original. Modelo exclusivo dela própria, aliás. Não é propriamente magra, será mais para o cheio, mas tem uma elegância e uma graça genuínas. Há coisas que não se aprendem, há coisas que não se imitam, nascem com a pessoa. Nisso reside a verdadeira beleza. Ser-se como se é e assim se mostrar. O que na verdade chama a atenção para ela não é o vestuário, por mais cuidado ou singular, é a sua genuinidade. Há, de facto, pessoas assim.