Uma inquietação que me vem de dentro. Que me
estremece o coração. Que me agita os pensamentos. E o corpo a exigir repouso.
Um repouso mais imposto do que apetecido. Mas que se não é cumprido logo se
sente. Logo o corpo dá sinal se abuso. Protesta. Dói. E não há remédio senão
obedecer. Senão esquecer o desassossego. Ignorá-lo. Conformar-me com mais
adiamentos. Mesmo que ainda não saiba exactamente o que fica adiado. Com esta
sensação de falsa partida. Esperando que não se repita para não provocar
desqualificação. A vida segue dentro de momentos.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
terça-feira, 26 de janeiro de 2016
segunda-feira, 18 de janeiro de 2016
Maria
Quando a Joana saiu de casa a Maria não disse nada. Eu
estava meio aparvalhado a ouvir a Joana a berrar comigo enquanto arrumava as
coisas dela numas malas que tinha trazido emprestadas de não sei quem.
Chamava-me morcão e arrumava as cuecas. Chamava-me imbecil e arrumava as
camisolas. Chamava-me anormal e arrumava os jeans. E que se ia embora porque já
nem me podia ver. E estava farta de me aturar. E chamava-me atrasado mental e
arrumava os colans. Chamava-me parvo e arrumava as mini-saias. E eu embasbacado
a olhar para aquilo tudo sem perceber donde vinha aquela fúria toda. Sem
perceber o porquê daquela atitude sem anúncio nem aviso. E ela a gritar comigo,
sem se lembrar que era dia da empregada. E eu cheio de vergonha nem falava. E
ela cada vez mais furiosa com o meu silêncio. E ela que estava farta de eu
nunca dizer uma palavra. Nem que sim nem que não. Que era um mono que para ali
andava. E quando chegou aos perfumes os insultos já eram repetidos. Pegou nas
malas, disse-me adeus, e foi-se embora e levou o carro. E eu fiquei parado sem
saber que raio se tinha passado. A empregada continuava na cozinha a passar a
ferro sem dizer nada. E quando chegaram as seis horas em vez de se ir embora
para a Brandoa ou para a Pontinha ficou cá em casa, fez-me o jantar, pôs a mesa
e chamou-me para ir comer. Comeu comigo, arrumou a cozinha e foi-se sentar na
sala a ver televisão ao pé de mim. Sem dizer nada. E eu que só sabia que ela se
chamava Maria e que ia lá a casa fazer a limpeza à quarta-feira, nem sabia se
era a mesma Maria que lá fazia a limpeza há quatro anos ou era outra, fiquei a
ver televisão com ela. E quando o filme acabou ela foi abrir a cama, esperou
que eu me deitasse e deitou-se também. E no dia a seguir quando cheguei a casa
tinha a roupa dela no armário. E não me apresentou pais nem irmãos. E continuo
a só saber que se chama Maria e dorme comigo. Faz-me a comida e trata-me da
roupa. E nunca disse nada.
terça-feira, 12 de janeiro de 2016
Marraquexe
Marraquexe. A cidade
vermelha. Para mim é rosada, o que só lhe aumenta o encanto. Fui lá parar uma
vez e deixei-me ficar. Gostei da luz, dos sons, do ambiente. Poderia
ter ficado a viver em Marraquexe se não fosse o mar. A ausência do mar. Sempre tive que sentir que tinha o mar perto. Havia o deserto ali ao lado, claro. Mas,
embora o adorasse, não me causava a emoção do mar. Gostei de lá viver, no
entanto. Naquele minúsculo quarto no cimo do prédio, demasiado quente, que
tinha escolhido pelas vistas e pela sensação de segurança. De um dos lados
avistava (e cheirava) uma zona de preparação e tingimento de peles e o meu
entretém, quando o cheiro permitia, era ver aqueles desgraçados naquele
trabalho duríssimo. Mas os tanques coloridos e as peles a secar lembravam uma
pintura abstracta. O resto do dia passeava pelo souk, ia ver as novidades à
Fnac Berbere, supremo exemplo do humor marroquino, e acabava numa esplanada
sobranceira à praça Djemaa el Fna a observar o movimento. A ver como as motoretas
conseguiam não colidir umas com as outras. Uma vez vi passar uma carregada de
caixas se ovos e quase desejei que tivesse um percalço. Fiz amizade com alguns
comerciantes do souk e acabei a passar tardes nas suas lojas a fumar chicha, a
beber chá e a vê-los endrominar modestamente os turistas. Digo modestamente
porque nunca os enganavam na qualidade do produto, de que muito se orgulhavam,
mas apenas no preço. Era gente simples e generosa. Com um deles fiz uma viagem
ao deserto. Conheci velhos berberes que nunca tinham saído da sua aldeia, mais
do que algumas viagens à cidade mais próxima, mas eram mais sábios que muitos
doutores. No regresso passámos em Ait Ben
Haddou e apaixonei-me pelo sítio. Fiquei lá uns dias só a deixar-me embeber do
espírito das ruínas e em meditação. Lá o tempo não passa. Parece que não
precisamos de nada. Quase nem de comer. Se não se tivesse acabado o dinheiro
acho que ainda hoje lá estava. Voltei a Marraquexe só para arrumar o saco e
partir.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2016
Faltas-me
Preciso de ti. Aqui. Ao pé de mim. Fazes-me falta. Preciso
tanto mais de ti, quanto menos preciso de ti. Não preciso de companhia só para
não estar sozinho, estou muito bem comigo próprio. Não preciso de ti para me
lavares a roupa ou limpares a casa, consigo fazer isso tudo sem ajuda. Não
preciso de ti para me fazeres o almoço, sei cozinhar e até gosto
de ir às compras. Mas preciso de ti. Tanto. Por ti. Por seres tu. Porque também
não precisas de mim. Por seres tu quem eu quero ao meu lado. Sempre. Por isso
sinto tanto a tua ausência. Sempre. Faltas-me!
segunda-feira, 4 de janeiro de 2016
F***-se
Foda-se! Almeida! admoestou-o Cardoso,
antes de exclamar, Foda-se! ao aperceber-se de quem tinha à sua frente: a
mulher do presidente da república encontrava-se inanimada no sofá, apenas vestida
com meias de rede e um cinto de ligas, suja de sangue e com uma faca na mão.
Respirava visivelmente, pelo que estava viva. Na cama jazia um corpo de homem
totalmente nu, de tal forma esfaqueado que o torso era uma massa informe e o
sangue tinha escorrido até à alcatifa.
Estamos fodidos, Cardoso, disse
Almeida, empurrando o quépi para a nuca, não há forma de sairmos bem disto. Almeida, que era da oposição,
ainda olhou para o corpo do homem, com a secreta esperança de que fosse o
presidente, mas logo verificou que era demasiado jovem para ser ele. Além disso
era negro. Nem essa consolação tenho, pensou, fodido e mal pago como sempre. Que vamos fazer? Perguntou
Cardoso. Tens a certeza que a senhora é
quem estamos a pensar? respondeu Almeida.
Não, pois não. Pode ser apenas uma pessoa muito parecida. Então vai ser bai de
buque, fodidos por fodidos fazemos tudo direitinho. E nunca percebemos quem era
a senhora, capisce? Nem passámos da porta para não estragar as provas como a PJ
está sempre a recomendar. Certo, Almeida, tens razão. Vou
ligar ao 112. Eu ligo para a PJ. Sabes, não sei
se fiquei parado à porta por causa do cadáver, se da visão da primeira-dama
nestes preparos. Está calado, pá, nem me fales, respondeu
Cardoso com um estremecimento de repulsa.
Almeida ligou para o piquete da
PJ e quando ouviu a voz do Inspector Vasco não conseguiu definir se ficou
chateado ou aliviado. José Vasco era um bom amigo e detestava vê-lo envolvido
naquele caso, mas por outro lado confiava nele para que nada fosse abafado. E
queria ver a reacção dele ao ver o quadro que tinha à sua frente. À cautela
recomendou-lhe que se despachasse para chegar antes do INEM e de preferência
sem companhia. E agora, que fazemos? perguntou
Cardoso. Vais lá para baixo esperar o INEM
que eu monto guarda à porta. E já que és tão católico reza para a senhora não
acordar antes de eles chegarem, senão temos o caldo entornado ainda mais do que
já está.
José Vasco foi o primeiro a
chegar e vinha sozinho. Entrou no quarto e voltou para trás quase
imediatamente: Porra Almeida, podias ter
avisado, tenho a minha vida sexual estragada para mais de uma semana. Não sabia que a visão de
cadáveres esventrados te afectava tanto, julguei que ao fim destes anos todos
já estavas calejado.Vai-te foder, Almeida, sabes bem
ao que me refiro. Não confirmo nem desminto, mas
tenho estado aqui a pensar numa coisa. Diz-me cá enquanto o Cardoso e o INEM
não chegam. Se a senhora é quem estamos a pensar não devia haver seguranças? Os dois polícias olharam-se por
um instante em silêncio e tomados pela mesma ideia precipitaram-se ao mesmo
tempo para dentro do quarto. Uma vista de olhos mais atenta, mesmo da porta, pela
roupa do homem amontoada na cadeira revelou a ponta do coldre da arma oficial a
espreitar por baixo da camisa. Tinham encontrado o segurança. Pelo menos tinham sexo seguro,
disse o inspector da PJ. Almeida saiu a correr enquanto
dizia: eu não vi nada, isto agora é contigo, sou muito teu amigo mas sou só um
agente da PSP. Não me posso deixar meter em caldeiradas destas. Se precisares
de mim estou à porta. Ouve lá, perguntou Vasco de
dentro do quarto, como que vieram dar com isto. Um telefonema anónimo de alguém
que dizia ser um vizinho incomodado pelo barulho e receoso de estar alguém em
perigo. Número não identificado. Quando chegámos estava tudo em silêncio, mas o
parvo do Cardoso resolveu experimentar o puxador da porta e ela abriu-se logo.
Foi quando vimos esse lindo espectáculo.
Pouco depois chegava o cortejo
completo: Cardoso, o pessoal do INEM e logo atrás o resto da brigada da PJ. E no momento em que entraram no
apartamento, demonstrando um timing perfeito, a senhora acordou. Almeida espreitou e a custo
conseguiu conter uma gargalhada ao ver a expressão caricata, tanto dos que
tinham acabado de entrar como da primeira-dama, todos de olhos arregalados a
olhar uns para os outros. A única excepção foi o médico ucraniano do INEM que, não
reconhecendo a senhora, se precipitou a socorrê-la, o que fez com que, quebrado
o impasse, ela começasse a gritar desalmadamente. Todos se começaram então a
mexer e a executar as suas tarefas como se os gritos tivessem ligado algum
interruptor, mostrando-se concentradíssimos no que faziam para tentar evitar
mostrar que a tinham reconhecido. Mas os gritos, ao invés de pararem, aumentaram
cada vez mais de volume, numa algaraviada em que só a custo se distinguiam palavras
como matei-o, traidor e alguns palavrões completamente inapropriados na
linguagem de uma senhora, ainda para mais primeira-dama. Vasco segredou
qualquer coisa ao ouvido do médico que o deixou atarantado e o fez apressar a
dar uma injecção na senhora, que logo sossegou, para alívio de todos os
presentes. E mais aliviados ficaram quando a levaram para o hospital.
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