Quando lhe ligaram do hospital a dizer que o pai tinha falecido foi
apanhado de surpresa. Nem sabia que ele estava doente, muito menos internado.
Falavam-se raramente. Quase sempre telefonemas breves. Nunca tinham sido
próximos. Ele culpava o pai por isso. Um pai sempre ausente, mesmo quando
estava presente. Sempre ocupado com as suas coisas, que ele nunca tinha
conseguido saber exactamente em que consistiam. Chegava a casa e fechava-se na
sua salinha, onde ele não era autorizado a entrar, e só saía para as refeições
que eram tomadas em silêncio, à moda antiga. Nunca lhe tinha perguntado pela
escola. Por namoradas. Pela vida. Bom dia, boa tarde. Um ocasional roçar de mão
pela cabeça quando era mais miúdo. Nunca um, Como estás? Parecia que ele era
invisível. Que nem dava pela existência dele. A mãe, pelo contrário, tinha sido
tudo para ele. Estava sempre ao seu lado. Falavam de tudo sem peias nem
segredos. Talvez para compensar o feitio fechado do marido. E ele retribuíra o
amor e atenção maternos. Eram sempre os dois para tudo. Uma unidade. Não
precisavam de mais ninguém. Por isso, quando a mãe morreu, saiu de casa e
afastou-se. Pagou ao pai na mesma moeda. Organizou a sua vida noutra cidade,
que não lhe lembrasse a ausência dolorosa da mãe, e contactava o pai o mínimo
indispensável a ficar de bem com a sua consciência. E, mesmo isso, apenas
porque a mãe lho tinha pedido antes de morrer.
Quando chegou a hospital verificou que o pai tinha deixado tudo pago e
disposto acerca dos procedimentos do funeral e que só lhe faltava assinar uns
papéis e acompanhar o féretro ao crematório. Entregaram-lhe também uma pasta
com documentos, em que verificou que a casa tinha sido posta no seu nome, e um
molho chaves. Entre elas uma mais pequena que identificou de imediato de onde
deveria ser. A mais importante para ele. Claro que apesar da proibição e da
constante vigilância da mãe tinha entrado na salinha do pai. Que adolescente o
não faria? Mas tinha encontrado apenas um pequeno aposento quase vazio, com
excepção de um cadeirão, uma estante com uns poucos livros e um móvel com meia
dúzia de objectos sem interesse. Neste último havia uma gaveta fechada à chave
e que não tinha conseguido abrir. Em parte por falta de oportunidade, em parte
por medo de estragar alguma coisa e ser descoberto. Ou talvez, apenas, por
falta de interesse. Mas, com o tempo, tinha dado consigo a pensar cada vez mais
naquela gaveta e no que ela poderia conter. Que segredo guardaria o pai? Por
isso, assim que pôde, correu a casa do pai e entrou na salinha. Estava
precisamente como se lembrava, apenas mais poeirenta. Dirigiu-se ao móvel e
abriu a gaveta. Quando viu o que estava lá dentro não soube o que pensar. Ficou
completamente aturdido. Numa completa confusão de sentimentos que iam da
ternura à raiva. Tirou a gaveta do móvel e levou-a para cima da mesa de jantar,
onde tinha mais luz. E, emocionado, começou a retirar, um a um, mais do que
objectos, fragmentos da sua vida desde que nascera: uma chupeta, uma fralda,
desenhos que tinha feito em diversas idades, brinquedos estropiados, um pião, o
rapa, berlindes, um registo de todas as suas notas e actividades escolares, uma
revista erótica que julgara que a mãe tinha descoberto e deitado para o lixo, algumas
redações, fotografias que nem sabia que existiam, um teste psicotécnico, uma
cópia da tese de mestrado...
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