Foda-se! Almeida! admoestou-o Cardoso,
antes de exclamar, Foda-se! ao aperceber-se de quem tinha à sua frente: a
mulher do presidente da república encontrava-se inanimada no sofá, apenas vestida
com meias de rede e um cinto de ligas, suja de sangue e com uma faca na mão.
Respirava visivelmente, pelo que estava viva. Na cama jazia um corpo de homem
totalmente nu, de tal forma esfaqueado que o torso era uma massa informe e o
sangue tinha escorrido até à alcatifa.
Estamos fodidos, Cardoso, disse
Almeida, empurrando o quépi para a nuca, não há forma de sairmos bem disto. Almeida, que era da oposição,
ainda olhou para o corpo do homem, com a secreta esperança de que fosse o
presidente, mas logo verificou que era demasiado jovem para ser ele. Além disso
era negro. Nem essa consolação tenho, pensou, fodido e mal pago como sempre. Que vamos fazer? Perguntou
Cardoso. Tens a certeza que a senhora é
quem estamos a pensar? respondeu Almeida.
Não, pois não. Pode ser apenas uma pessoa muito parecida. Então vai ser bai de
buque, fodidos por fodidos fazemos tudo direitinho. E nunca percebemos quem era
a senhora, capisce? Nem passámos da porta para não estragar as provas como a PJ
está sempre a recomendar. Certo, Almeida, tens razão. Vou
ligar ao 112. Eu ligo para a PJ. Sabes, não sei
se fiquei parado à porta por causa do cadáver, se da visão da primeira-dama
nestes preparos. Está calado, pá, nem me fales, respondeu
Cardoso com um estremecimento de repulsa.
Almeida ligou para o piquete da
PJ e quando ouviu a voz do Inspector Vasco não conseguiu definir se ficou
chateado ou aliviado. José Vasco era um bom amigo e detestava vê-lo envolvido
naquele caso, mas por outro lado confiava nele para que nada fosse abafado. E
queria ver a reacção dele ao ver o quadro que tinha à sua frente. À cautela
recomendou-lhe que se despachasse para chegar antes do INEM e de preferência
sem companhia. E agora, que fazemos? perguntou
Cardoso. Vais lá para baixo esperar o INEM
que eu monto guarda à porta. E já que és tão católico reza para a senhora não
acordar antes de eles chegarem, senão temos o caldo entornado ainda mais do que
já está.
José Vasco foi o primeiro a
chegar e vinha sozinho. Entrou no quarto e voltou para trás quase
imediatamente: Porra Almeida, podias ter
avisado, tenho a minha vida sexual estragada para mais de uma semana. Não sabia que a visão de
cadáveres esventrados te afectava tanto, julguei que ao fim destes anos todos
já estavas calejado.Vai-te foder, Almeida, sabes bem
ao que me refiro. Não confirmo nem desminto, mas
tenho estado aqui a pensar numa coisa. Diz-me cá enquanto o Cardoso e o INEM
não chegam. Se a senhora é quem estamos a pensar não devia haver seguranças? Os dois polícias olharam-se por
um instante em silêncio e tomados pela mesma ideia precipitaram-se ao mesmo
tempo para dentro do quarto. Uma vista de olhos mais atenta, mesmo da porta, pela
roupa do homem amontoada na cadeira revelou a ponta do coldre da arma oficial a
espreitar por baixo da camisa. Tinham encontrado o segurança. Pelo menos tinham sexo seguro,
disse o inspector da PJ. Almeida saiu a correr enquanto
dizia: eu não vi nada, isto agora é contigo, sou muito teu amigo mas sou só um
agente da PSP. Não me posso deixar meter em caldeiradas destas. Se precisares
de mim estou à porta. Ouve lá, perguntou Vasco de
dentro do quarto, como que vieram dar com isto. Um telefonema anónimo de alguém
que dizia ser um vizinho incomodado pelo barulho e receoso de estar alguém em
perigo. Número não identificado. Quando chegámos estava tudo em silêncio, mas o
parvo do Cardoso resolveu experimentar o puxador da porta e ela abriu-se logo.
Foi quando vimos esse lindo espectáculo.
Pouco depois chegava o cortejo
completo: Cardoso, o pessoal do INEM e logo atrás o resto da brigada da PJ. E no momento em que entraram no
apartamento, demonstrando um timing perfeito, a senhora acordou. Almeida espreitou e a custo
conseguiu conter uma gargalhada ao ver a expressão caricata, tanto dos que
tinham acabado de entrar como da primeira-dama, todos de olhos arregalados a
olhar uns para os outros. A única excepção foi o médico ucraniano do INEM que, não
reconhecendo a senhora, se precipitou a socorrê-la, o que fez com que, quebrado
o impasse, ela começasse a gritar desalmadamente. Todos se começaram então a
mexer e a executar as suas tarefas como se os gritos tivessem ligado algum
interruptor, mostrando-se concentradíssimos no que faziam para tentar evitar
mostrar que a tinham reconhecido. Mas os gritos, ao invés de pararem, aumentaram
cada vez mais de volume, numa algaraviada em que só a custo se distinguiam palavras
como matei-o, traidor e alguns palavrões completamente inapropriados na
linguagem de uma senhora, ainda para mais primeira-dama. Vasco segredou
qualquer coisa ao ouvido do médico que o deixou atarantado e o fez apressar a
dar uma injecção na senhora, que logo sossegou, para alívio de todos os
presentes. E mais aliviados ficaram quando a levaram para o hospital.
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