Ao longo da vida vamos acumulando coisas. Objectos.
Tralha. Umas herdamos. Outras compramos ou são-nos oferecidas. Algumas,
simplesmente, encontramos. Todas são valiosas, para nós, mesmo que não valham
dinheiro. São marcos da nossa vida. São elas que nos fazem sentir em casa. Que
espelham a nossa individualidade. Mas, às tantas, se não temos cuidado, podemos
começar a ficar assoberbados. Todas essas coisas podem começar a asfixiar-nos.
A aprisionar-nos. A passar de raízes que nos alimentam, a raízes que nos
prendem. E começamos a questionar-nos, então, se precisamos de tudo aquilo. Se
os nómadas, que apenas possuem aquilo que podem transportar consigo, não são
mais felizes. Se não podemos prescindir de tudo o que possuímos para além dos
objectos de uso diário. Se não temos dentro de nós tudo aquilo de que
necessitamos para sermos o que somos.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
segunda-feira, 31 de agosto de 2015
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
O porco
Os guinchos do porco rasgaram a manhã já o sol ia a
meia altura. A dona da casa benzeu-se e perguntou, para ninguém: que raio é
isto que nunca ouvi um porco guinchar assim a não ser quando lhe espetam a faca
na matança e estes gritos vêm da estrada. Corremos todos às janelas que davam
para a rua esperando ver algum acidente, um porco atropelado ou caído dalguma
camioneta, mas na rua estava o bicho que guinchava, o dono, um lavrador vizinho
da casa que o tentava levar pela corda, e um ajuntamento cada vez maior de
gente que acorria a ver o que se passava. Já uns, mais afoitos, empurravam o
varrasco enquanto outros tiravam a corda das mãos do homem que desesperava
puxando com quanta força tinham, mas o animal não se movia. O lavrador acabou
por fazer sinal para desistirem e, visivelmente comovido, quando os guinchos
diminuíram falou desta maneira: criei este porco desde pequenino e todas as
semanas, desde que o tenho, o levo ao cimo da rua, ao matadouro, para o pesar e
para que, quando chegasse a vez dele, não estranhasse o trajecto; o animal foi
sempre pacificamente comigo e parecia até gostar do passeio, bastava pôr-lhe a
corda ao pescoço que se deixava levar como um cão; hoje, que era a última
viagem, fiz tudo como das outras vezes mas o bicho pôs-se nestes preparos, como
que adivinhando a morte.
Não sei como acabou a história nesse dia, nem que
moral retirar dela. Só sei que tinha uns dez anos quando a ela assisti e nunca a
consegui esquecer.
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Sento-me ao mar
Sento-me ao mar a escrever na espuma com algas e
estrelas. As ondas trazem areia que emperra os mecanismos mas também objectos
que desencadeiam memórias. Reminiscências de vivências ou de sonhos. Ideias
passam, rápidas, como peixinhos prateados. Ou serão mesmo apenas peixes? É
salgada esta escrita. Mas saborosa. Umas vezes tépida outras gélida, como a
água do mar em diferentes latitudes. Fonte de vida ou de morte. De prazer ou de
incómodo. Em certas ocasiões dói, como quando se pisa um ouriço ou um peixe-aranha.
Lembramo-nos, então, que estamos vivos.
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
Eu não escrevo por escrever
Eu não escrevo por escrever. Escrevo porque há palavras dentro de mim a sufocar-me e que têm de ser escritas para conseguir respirar novamente. Escrevo porque com as palavras posso desnudar-me. Posso expurgar medos da alma. Com as palavras posso agitar consciências. Ou, pelo menos, tentar. Não escrevo para conseguir efeitos harmoniosos ou exibir dotes retóricos. Escrevo para desvendar maravilhas ou cravar espinhos. Para viver sonhos ou exorcizar pesadelos. Escrevo porque tenho palavras no sangue, que me correm do coração para os dedos.
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
Bruma
Que importa a bruma se sigo sem destino? Se o que busco está em mim? Avanço névoa adentro sem receios. Aceito as surpresas e obstáculos. A palavra perder-me não tem cabimento nesta jornada. Só se perde quem sabe para onde quer ir. Eu apenas vou. Para onde, saberei quando lá chegar. Se alguma vez chegar a saber. Por isso o nevoeiro é um irmão acolhedor. Um amigo que me faz concentrar no mais essencial. Sem horizontes longínquos que me distraiam, sem vislumbrar árduos longes que me desencorajem, viajo melhor dentro mim.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Moldo palavras
Pego nas palavras e moldo-as como barro. Deixo
fluir as emoções para a ponta dos dedos. Dessa amálgama sai algo que umas vezes
parece alguma coisa. Outras é mais abstracto. Mas, de todas as vezes, parece
coisa diferente consoante os olhos que a vêem. Que lêem as palavras que amassei
com emoções, risos e lágrimas. Com memórias. Com a imaginação. Umas vezes uso
as minhas emoções, outras roubo-as descaradamente a outros. Umas vezes invento
tudo, outras exponho-me completamente. Outras vezes, ainda, nem uma coisa nem
outra. Nunca o saberão vós. Nunca o sei eu.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
O gaio e o gato
O gaio voou até à árvore. Pousou num dos ramos superiores. O gato
dormia na confluência de dois dos troncos principais. O pássaro pareceu
não dar pela presença do gato. O felino aparentou continuar a dormir mas, quem
o olhasse com mais atenção, daria conta que entreabriu ligeiramente um olho e
agitou um pouco a cauda. O pássaro saltitou de ramo em ramo. Mais acima. Mais à
esquerda. Mais para o meio. Mais abaixo. Aproximando-se do gato que fingia
dormir. O gaio agitava a cabeça, olhando em volta. O gato agitava de quando em
quando a ponta da cauda, numa sacudidela rápida. Como era possível que o
pássaro não visse o gato? Que continuasse a aproximar-se dele, aparentemente
descuidado? Quando o gaio estava ao seu alcance, o gato saltou. O gaio, mais
atento do que ele esperava, desviou-se no último segundo o que o atrapalhou. O
gato falhou o pássaro e o ramo e estatelou-se no chão. O gaio volteou no ar e
executou um voo por cima do gato, mas fora do alcance dele, afastando-se com um
piar áspero que parecia uma gargalhada. O gato sacudiu-se. Olhou em volta e,
como se não se tivesse passado nada, foi dormir para outro lado.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Despiste-te ( a Teresa Torga)
Despiste-te um dia. Em plena rua. Em plena tarde.
Despiste-te e ficaste nua. Inteiramente nua. Indiferente a quem passava. Apenas
te querias despojar de tudo? Ou, farta de te sentires invisível, querias que
olhassem para ti? Que reparassem que existias? Despiste-te um dia, em plena
rua, em plena tarde, porque te apeteceu. Porque, já que ninguém parecia reparar
em ti, achaste que ninguém se iria importar. E sentiste-te livre. Livre. Mesmo
quando a policia te levou presa.
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