O sonho fez-se verbo. E o verbo poema. Ou seja,
sonho novamente. E amor. Sonhaste gente e criaste gente. Gente que encarnou no
verbo. Gente sonhada e concretizada. Amada. Viva. Sonhos sonhados. Sonhos
apetecidos. Vividos. Sonhos, alcançados ou não, sempre lutados. E o amor fez-se
verbo e o verbo poema. E em poema transformaste a solidão e o desengano. A
desilusão e o maravilhamento. O vento e a calmaria. O mar e a lagoa. A flor e o
espinho. A dor e o prazer. A vida. Porque percebeste que a vida é tudo e tudo é
poema.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016
Princesa
Quando era pequena julgava que era uma princesa. A
sério que julgava. Afinal de contas até vivia num palácio igualzinho às
gravuras dos livros de histórias. Eu bem estranhava que o meu palácio só
tivesse três assoalhadas contando com a cozinha, mas como tinha torres com
telhados em bico e ameias continuava convencida que era princesa. Também
estranhava não ter aias nem criados e que a minha mãe passasse os dias na
cozinha, vestida de rainha e com uma coroa na cabeça, a fazer comida e a passar
o chão a pano de joelhos, mas julgava que era uma excentricidade da realeza.
Não estranhava muito não ter casa de banho porque já tinha ouvido dizer que nos
castelos era coisa que não havia e, de qualquer maneira, lá na aldeia ninguém
tinha. O que mais me fazia confusão era o meu pai, em vez de coroa e manto,
trazer vestido um fato de macaco e um boné da tropa todos borrados de tinta e,
em vez de andar de coche, chegar a casa num triciclo motorizado carregado de
latas e pincéis e um escadote. Mas como na escola todos se riam muito para mim
e me chamavam princesinha, vivia num palácio igualzinho às gravuras dos livros
de histórias, com torres com telhados em bico, e andava sempre vestida de
princesa, as minhas dúvidas acabavam. Só mais tarde descobri que o meu pai era
pintor da construção civil e tinha sido emigrante. E quando regressou de França
tinha resolvido fazer uma casa igualzinha aos palácios dos livros de histórias.
E a partir desse dia para se vingar a minha mãe passou a vestir-se de rainha. E
a mim de princesa.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016
A formiga
Assim que
atingiu o estado adulto, esticou as pernas e começou a andar, aquela formiga
percebeu que era uma obreira. E, assim, logo começou a trabalhar, seguindo as
mais velhas pelo carreiro fora em busca de alimento para o formigueiro. O
trabalho não era difícil, mas era duro e exigia força e tenacidade. Assim que
identificava algo nutritivo, pegava nele e regressava para o armazenar na
despensa, para logo voltar à procura de mais. Às vezes era coisa leve e
próxima, mas outras vezes, eram coisas mais pesadas do que ela própria e
estavam distantes, pelo que ficava extenuada. Além do perigo que representava
atacar outros bichos que ainda não estavam mortos e podiam responder ao ataque.
Apesar de trabalharem em equipa, as baixas eram frequentes e, juntamente com a
presa, lá iam também os cadáveres das companheiras que, ali, nada se podia
desperdiçar. Assim se passaram os dias daquela formiga. Até que um dia,
sentindo-se cansada, observou que as formigas soldado levavam uma vida folgada.
Como o local era tranquilo, não tinham mais nada que fazer do que ir passeando
pelos carreiros a incitar as obreiras a trabalhar mais depressa. E, como pensou
que aquilo não era justo, no dia seguinte, em vez de sair para o trabalho,
juntou-se às soldados e ficou a ver trabalhar as colegas. Logo uma das soldados
lhe perguntou o que pensava ela que estava a fazer. Ao que ela respondeu,
prontamente: estou cansada de ser obreira, agora chegou a minha vez de ser
soldado e também descansar. E não queres mais nada? questionou então a soldado,
Uma bebida fresca, alguém que te carregue ao colo ou o rabinho lavado com água
de colónia? Alguém que me leve era simpático, já que me doem tanto os meus
pezinhos, respondeu a formiga, não se apercebendo da ironia da pergunta. É para
já, respondeu a soldado. E com um golpe certeiro das tenazes cortou-a ao meio e
mandou que duas obreiras carregassem as metades de volta ao formigueiro para
servir de alimento às restantes.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
A água do tempo
Numa recôndita gruta, situada numa remota cordilheira,
corre uma água com propriedades especiais. Chamam-lhe a água do tempo, porque
guarda memórias. A água forma um pequeno e calmo rio que abastece um grande
lago subterrâneo, tão profundo que nunca ninguém o conseguiu medir. Não se sabe
por que mecanismo, a água volta a subir para voltar a lá desaguar num movimento
perpétuo. E mede, também, a passagem do tempo como um relógio que além de horas
medisse anos e séculos, pois toda a gruta funciona como uma gigantesca
clepsidra. A gruta está guardada por um povo antigo a quem chamam os guardiões
do tempo, e que só deixam aproximar-se dela quem vai por bem. Quem quer lá ir
guardar memórias, só tem de se banhar numa das poças que o rio forma. E quando
as quer recuperar, basta lá voltar e beber água. Dizem que há pessoas que,
quando bebem daquela água, conseguem recuperar não só as suas lembranças, como
as memórias dos seus antepassados. Dizem que há pessoas que se vão banhar no
rio e vêm embora, para não mais lá voltar.
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