David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Invento eus



Invento eus. Um dia sou viajante. Outro dia prisioneiro. Um outro sem abrigo. Outro ainda sou mulher. Posso ser tudo o que eu quiser. Até pássaro, ou árvore, ou peixe. Posso até ser vários ao mesmo tempo. Todos os dias invento um novo eu e brinco com ele. E assim posso sair a correr mundo. Regressar ou não. Voar nos mais altos céus ou submergir no mar imenso. Gozar calmarias ou enfrentar tempestades. Viajar para universos paralelos. Ou, tão somente, mergulhar no mais profundo desse eu inventado. Um eu que é feito dos mesmos átomos, mas que não é o meu eu real. Que em comum comigo tem apenas a matéria. É um jogo que jogo comigo próprio. Que me permite evadir de mim. Que me possibilita reflectir de outras perspectivas. Pensar pensamentos sendo outro.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Repetimos gestos



Repetimos gestos. Cumprimos gestos por repetição. Viciamo-nos neles. Criamos rotinas. Agarramo-nos a eles como a bóias salva-vidas. Usamo-los para manter situações que muitas vezes já não desejamos, mesmo sem dar por isso. Sem dar conta que as queremos terminar. Usamo-los para nos manter à tona da vida. Para sobreviver. Tornamo-nos autómatos. Imitamos sentimentos. Emoções. Os gestos repetidos até à náusea. Para justificar a situação em vez de, naturalmente, dela decorrerem. Dizemos a nós próprios, quando disso nos apercebemos, que é a última vez. Que acabou. Mas, quando reparamos, já tornámos a repetir aquele gesto. Mecanicamente. Ou apenas por medo do vazio.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Um homem singular



Era um homem sui generis. Magro, de feições riscadas a goiva e a formão, e desengonçado de fala e de figura. Parecia, por isso, um pouco tonto, mas tinha o seu mister que exercia com bons resultados em estabelecimento próprio, o que desmentia de algum modo essa primeira impressão. Era também, apesar de não muito delicado no falar, muito educado no trato. Havia, portanto, no todo, uma algumas peças que pareciam não encaixar, o que o tornava naquele ser singular. Apesar disto, ou talvez precisamente pela mesma razão, participava activamente numa série de actividades sociais e culturais. Uma delas realizava-se numa bem conhecida colectividade da cidade, onde num determinada ocasião se encontrava. Não era ainda época de telemóveis, pelo que as comunicações urgentes se faziam para os telefones fixos, que o eram de facto, pois que estavam efectivamente presos ao fio que os ligavam à rede. Por isso, nesse dia em particular, estavam os corpos gerentes da associação reunidos, uns seis ou sete elementos, quando o telefone tocou na sala da direcção. Era alguém que solicitava falar com ele, pelo que o foram chamar. Ao chegar ao aposento, com o seu ar característico e a sua proverbial educação, cumprimentou cada pessoa calmamente com um aperto de mão antes de atender a chamada. A conversa foi curta e os presentes apenas ouviram: Estou?! Sim?! Não pode ser! Vou já para aí. Desligou. Despediu-se novamente de todos, um por um, com outro aperto de mão. E rematou, em jeito de conclusão: Desculpem mas tenho de me ir embora, a minha casa está a arder.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Livros de pedra


  Há livros que são de pedra. Não propriamente pelo que pesam ou serem maçudos mas pelo peso das ideias que contêm. Nem é sequer uma questão de conterem muita ciência. É pelos valores que nos transmitem e os pensamentos que nos suscitam. São livros sólidos. Que perduram no tempo como um monumento. Que por mais tempo que passe sobre a sua génese continuam actuais. Livros que são pedras constituintes do edifício do nosso eu. Que mesmo tendo-os lido há muitos anos se mantêm dentro de nós e nos vêm regularmente à lembrança ou estão entranhados no nosso ser. Livros que nos constroem e reconstroem. Livros que fazem o que somos.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Estilhacei-me



Caí ao chão e parti-me em bocados. Estilhacei-me. Não há cola que me valha, mesmo que fosse possível encontrar todos os fragmentos. Apesar disso, com o cimento da vontade me vou reconstruindo. Pedaço a pedaço. Tentando preencher com memórias as partes em falta ou demasiado destruídas. É um trabalho minucioso e demorado. Uma tarefa utópica e ciclópica. Sem fim à vista, já que há constantes derruimentos. É um reedificar contínuo. Permanente. Sempre com a dúvida se o estou a fazer correctamente. Se ponho as peças nos sítios certos. Ou se devo ser fiel ao original, com os mesmos erros e virtudes, ou, pelo contrário, aproveitar para modificar e corrigir. É uma luta de emoções. Sentimentos fortes e díspares. Quantas vezes desesperador. Muitas vezes angustiante. Mas sempre gratificante. E, assim, vou voltando a ser eu. Mas jamais o mesmo.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sofreguidão



Às vezes parecia que andava ávido. Que não podia perder nenhuma oportunidade que lhe ofereciam, desde que fosse grátis. Talvez por ter tido dificuldades económicas a certa altura da vida. Parecia andar sempre aguado. E nessa sofreguidão acabava, tantas vezes, por trocar o essencial pelo acessório. Por perder coisas mais importantes. Por não descobrir algo novo. Era uma voracidade por coisas, não por viver. Quantas vezes trocou estar com a namorada por um almoço ou um jantar, só porque era oferecido. Quantas vezes trocou uma viagem por uma festa, sempre igual. Quantas vezes confundiu bajulice com amizade. Quantas vezes julgava estar a aproveitar a vida quando, na realidade, estava a desperdiçá-la. E no fim, acabou a fintar a solidão.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Um enigma



Somos todos um enigma. Nunca conhecemos inteiramente quem está ao nosso lado. Nem aquele que vive connosco uma vida inteira. O que não admira pois nem nos conhecemos inteiramente a nós próprios. Nem sempre é necessariamente mau um pouco de mistério. Apimenta as coisas. Desde que não se torne um abismo. Por outro lado, as pessoas mudam com o tempo. Nós e os outros. Por isso, se nos distraímos, se não vamos estando atentos às alterações, que vão sendo graduais e subtis, acabamos com um estranho a nosso lado. Que poderá sentir exactamente o mesmo que nós. Que também já não nos reconhece. E, como a mudança é inevitável e irreversível, a única solução é estarmos sempre atentos e procurar mudar em conjunto. Ou, pelo menos, apercebê-la em tempo real e conseguirmos aceitá-la. Para não termos, nem sermos, surpresas desagradáveis.