Um ruído desperta-me e espanta-me o sonho. Corro
atrás dele, muito quieto, para melhor o alcançar, mas não consigo lá regressar.
Não me lembro do que estava a sonhar, mas devia ser bom pois sentia-me bem.
Porque será que é mais fácil recordarmos os pesadelos do que os sonhos
bonançosos? Que quando acordamos sobressaltados, com o coração a bater
descompassadamente, cobertos de suor por causa de um pesadelo, rememoramos
todos os pormenores perturbantes? E que depois de acordarmos lhes queremos
encontrar significados ocultos? Prenúncios de desgraças? E que, quantas vezes,
esquecemos com o despertar os sonhos agradáveis? Devia ser ao contrário.
Devíamos esquecer os maus e guardar os bons na memória. Mas, supremo
masoquismo, fazemos o mesmo com os sonhos que sonhamos acordados.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Pesadelo
Sonhou que
tinha mudado a foto de perfil no facebook e não tinha recebido nenhum like.
Ficou desvairado. Verificava a página a cada cinco minutos mas nada. Nem um
like. Nem um comentário. Nada. Que angústia. Será que já ninguém reparava no
que publicava? Onde estavam os seus milhares de amigos? Às tantas desatou a pôr
likes nas publicações dos seus amigos todos. Frenético. Num agitação desconexa.
A ver se desse modo alguém se lembrava dele. Mas nem assim obteve qualquer resposta.
Acordou então. Tremendamente angustiado. Que sonho horroroso tinha tido. Quando
conseguiu despertar mais um pouco olhou à sua volta e riu-se. Que estranho
pesadelo. Como tinha ido sonhar como uma coisa daquelas. Logo ele que nem tinha
facebook nem sabia o que era, nem tinha computador, nem sequer tinha casa.
Devia ser influência das conversas dos miúdos na paragem do autocarro ali ao
lado. Coçou a cabeça, afastou os cartões e pensou onde havia de ir tentar
arranjar algo para comer.
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Quietude
Está muito quieta. Espapaçada. Mas nem sempre foi
assim. Já foi veloz. Activa. Sempre em movimento. Andava de pessoa para pessoa
em grande corrupio. Até havia quem lhe chamasse chata. Quem se sentisse
incomodado. Mas ela era apenas alegre. Gostava de conviver. Nunca conseguia
sossegar mais do que uns breves instantes. Numa permanente roda-viva. Agora
está diferente. Queda. Parada. Uma mosquinha morta. Bastou uma palmada
certeira.
terça-feira, 20 de outubro de 2015
O corpo revolta-se
Às vezes o corpo revolta-se. Pensa por si próprio e
não obedece à cabeça. Repele o que o cérebro manda atrair. E vice-versa. Dói
onde não deve. Recusa doer onde está magoado. Continua em movimento quando a
razão o manda parar. Imobiliza-se quando a cabeça lhe diz para avançar. Entra
numa espécie de modo automático, sem controlo nem porquê. Quando damos por ela
já está. Seja asneira ou acto heróico. Seja coisa certa ou errada. Estrague ou
resolva a nossa vida. Fiquemos aleijados ou salvemos alguém. E depois passamos
muito tempo, quando não o resto da existência, a receber os louros ou a resolver
os danos. Ou, tão simplesmente, a conformar-nos com eles.
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
O toque dos sinos
Sempre senti um enorme fascínio por sinos. Pelo
toque dos sinos. Adoro ouvi-los. Mesmo quando tocam a finados. Mas quando o
toque é festivo, então, é um encanto. E quando é um carrilhão fico deslumbrado.
Já quis pôr um dobrar de sinos como toque de telemóvel, porém pareceram-me
muito pífios todos os que logrei arranjar. Mas ainda tenho esperança de o
conseguir. Ouvir um sino, não sei porquê, transporta-me para uma outra
dimensão. Parece que me evolo no ar, juntamente com as ondas sonoras, e voo
para muito longe de mim. E, quando o sino se cala e eu regresso, sinto uma
extraordinária sensação de plenitude.
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
Dissolvo-me
Sinto-me dissolver no tempo. É uma sensação
semelhante a boiar em água tépida. Um relaxamento até agradável. Mas em que o
corpo se vai diluindo a partir das extremidades. De fora para dentro.
Desaparecendo em névoa. Não penso em nada. Não me importo com nada. Deixo-me
ir. Apenas. Desagregar. Desaparecer. Pouco a pouco. Tecidos e fluidos. Molécula
a molécula. Até só sobrarem átomos dispersos. E então serei nada. Serei tudo.
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