Não tinha medo da morte. Porém sempre acreditou que
ia morrer cedo. Desde criança. Por isso nunca fez nada que demorasse tempo.
Nunca leu um romance. Só lia poemas ou contos curtos. Só estudou o estritamente
obrigatório na escola. Depois foi aprendendo coisas avulsas, ao sabor das
necessidades ou acasos. Nunca cultivou amizades. Muito menos amores. Jamais se
empenhou numa causa. Nunca se permitiu sonhar. Apenas consentiu a si próprio
ter alguns desejos mais imediatos. Também nada arriscou. Foi vivendo a vida dia
a dia sempre à espera que fosse o último. Quando chegou aos noventa anos e
olhou para trás percebeu que se tinha equivocado. Que por causa daquela ideia
pouco mais se tinha permitido do que existir. E como isso tinha sido um
tremendo desperdício.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
segunda-feira, 29 de junho de 2015
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Um homem chora
Um homem cai no chão e chora. Não chora por cair no
chão. Deixa-se cair no chão para chorar. Chora convulsivamente. As lágrimas
jorram como rios e todo ele estremece com os soluços. Que aflição sentirá para
chorar assim? Que mágoa? Quem passa tanto dele se condói como o despreza. Quase
todos se desviam e evitam olhá-lo. Outros ficam a olhar de longe. Há quem passe
e sinta inveja. Não do sofrimento que sente mas da capacidade de se abandonar
assim ao choro. De chorar assim tão avassaladoramente. De lavar assim a sua
dor. Também eles têm desgostos e dores que desejariam extravasar e não
conseguem. Por isso seguem o seu caminho e o apostrofam. Outros troçam dele.
Vejam lá um homem a chorar assim. Um homem não chora. Mas, bem lá no fundo
deles próprios, não acreditam no que dizem e gostariam de conseguir fazer o
mesmo que ele. Outros comovem-se com o seu choro e querem ajudá-lo. Mas
entendem que o homem não quer solidariedade. Apenas quer que o deixem chorar.
Que está tão centrado no que sente que nem se apercebe de nada do que o rodeia.
Que, seja lá por que razão que só ele conhece, sentiu vontade de chorar. Uma
vontade imperiosa de chorar. E, sem resistir, como deviam fazer todos os
homens, chorou.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
Estou que nem posso
Estou que nem posso! Nem quero
crer! Como foi possível uma coisa assim?! Se não fosse por quem me disse nunca
iria acreditar. Ainda nem estou em mim! Como pode ser?! De facto não podemos
mesmo fiar-nos em ninguém. Quanto mais santinhos parecem menos nós podemos
confiar. Se alguma vez eu iria imaginar que fosse acontecer tal coisa. Parece
impossível! Ainda estou banzada. Estou mesmo pasma! Mas pronto, toma lá que é
para aprenderes! São todos iguais!!!
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Página em branco
Não tenho a angústia da página em branco. Causa-me maior
ansiedade uma página demasiado cheia. Uma folha vazia é sempre um novo começo
ou espaço para prosseguir. Tudo pode acontecer. Até nada, como diz o outro.
Perante uma página limpa posso soltar a imaginação. Como quem solta um cachorro
num parque vazio, sem medo de o perder no meio da confusão. Numa página repleta
há pouco espaço para criar. Está já cheia de pensamentos usados e rasuras. De
memórias. É boa para guardar e passar à próxima. Posso lá voltar sempre que
entender, o que é bom, mas preciso do espaço aberto de uma folha desabitada
para poder continuar. Se não, desperdiço demasiado tempo a remoer ideias ou
acabo a usar os espaços disponíveis desordenadamente com grandes probabilidades
de me perder. Uma página em branco é como uma praia deserta. Posso ficar lá só
parado a apanhar sol. Posso convidar amigos ou desconhecidos para a mim se
juntarem ou esperar que eles apareçam. Posso deambular por ela deixando na
areia a marca dos meus passos. Ou posso de lá partir e navegar, navegar...
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Quem ri agora?
Quem ri agora? Quem? Agora já não ris, como quando
vinhas ter comigo e eu me assustava só por te ver. Por te pressentir. Por saber
o que ia acontecer a seguir. Já não sorris como quando me magoavas. E sabias
que me magoavas. Magoavas tanto. De tantas maneiras. Sempre a sorrir. A dor
física nem era a pior. Doía-me mais ver que me causavas dor enquanto sorrias.
Doía-me mais a alma ou o coração ou o que lhe queiram chamar. Doía-me o não ser
capaz de resistir. Na altura só pensava que um dia eu iria crescer e quem iria
rir seria eu. Que quem ri no fim ri sempre melhor. Agora quem tem vontade de
rir? Embora eu tenha crescido, e tudo tenha terminado, não acabou dentro de
mim. Continuo a sentir dor. E mágoa. Sinto alívio, é certo. Mas nenhuma vontade
de rir.
quinta-feira, 11 de junho de 2015
A memória
A memória é uma coisa tramada. Devíamos pensar que
era a falta dela que era mau, mas ter memória é muito pior. É por ter memória
que nos angustiamos com o futuro. É por ter memória que as saudades teimam em
demorar a passar. É por tê-la que a raiva nos invade quando nos tentam
endrominar julgando que já não nos lembramos de palavras e acções passadas. Quem
não tem memória não tem inquietações nem sofre remoques da consciência. Não se
questiona tanto. Erra sem medo nem remorso. Não tem dúvidas. Quem tem memória
sofre com a recordação dos seus erros e os dos outros. Interroga-se se estará a
agir correctamente. Consegue aperceber-se de caminhos que voltam a conduzir-nos
a abismos. Doem-lhe as ausências. Sofre com as reminiscências. É invadido por nostalgias.
E as nostalgias, mesmo as boas, podem ser dolorosas porque já só vivem na nossa
lembrança. Quem consegue não ter memória vive mais contente. Talvez, até, mais
feliz.
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