David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Rumo ao sul



Rumo ao sul. Não à procura do meu norte, mas de mim próprio. E preciso do sol e sal do sul para melhor viajar dentro de mim. Preciso dessa tepidez para mergulhar nessa busca de sentidos. Nessa procura de caminhos interiores. Para tentar entender-me. Raramente obtenho respostas nem isso me interessa. É na análise das dúvidas, que quase sempre geram outras dúvidas, que melhor me descubro. E acho outras vias para explorar. É esse caminhar que me motiva. Nunca a chegada. O fim de uma etapa é sempre o início da próxima. A beleza de pensar pensamentos, de viajar dentro de mim, é que posso percorrer vários caminhos simultaneamente. Tantos quantos quiser. Tantos quantos conseguir. E quantos mais percorro, por quantos mais me perco, mais me encontro.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A indiferença



A indiferença é como um cancro silencioso. Mata e quando começa a doer já é tarde demais. Quem vive indiferente ao e aos que o rodeiam, já morreu e não sabe. Existe, apenas, num permanente entorpecimento. Passa pela vida sem levar nem deixar lembranças. Será apenas mais um assentamento num qualquer registo de uma qualquer conservatória. Aos casais em que a indiferença se instalou, já expirou a validade e não repararam. Muitas vezes até acolhem com agrado esse apaziguamento que se instala após os conflitos. Julgam que atingiram o entendimento. Terrível engano. Pior ainda quando o indiferente é só um deles. Porque é apenas um cessar-fogo que antecede o aniquilamento total. Mesmo quando se mantêm juntos até ao fim das vidas, pois vivem algo que já não é. Se há indiferença é porque o amor acabou. E há muito tempo. Estarão juntos por hábito, por comodismo ou por qualquer outra razão. Os indiferentes poderão nunca se sentir infelizes. Poderão até existir tranquilos. Poderão, eventualmente, até andar contentes. Duvido é que alguma vez vivam felizes.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Destino



Aproximo-me do destino. Sei que estou a chegar quando passo pela casa dos cantoneiros e a estrada se dobra em curvas e contracurvas. Há qualquer coisa diferente no ar, também, embora nunca o tenha conseguido definir com exactidão. Uma alteração na luz, talvez. Depois, quando a estrada se desenrola na longa recta bordejada de eucaliptos, sei que estou quase, quase. Só faltam as últimas duas curvas e a placa que anuncia faltarem quinhentos metros. Mas hoje, quando chego, não paro, avanço e escolho não ter destino.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Crimes e castigos



Há lugares com uma energia estranha. Mesmo eu que não sou dado a misticismos sinto, por vezes, como que uma alteração no ar. Algo que não consigo definir mas que distingo perfeitamente. Um desses sítios é na baixa de Lisboa, junto ao Rossio. Nem sabia como se chamava aquele largo mas desde sempre senti algo peculiar quando lá passava. Há alguns anos, passando à porta da Igreja de S. Domingos, ouvi música e entrei. Um coro cantava. Eram muito belos os cânticos mas o que mais me fascinou foi a estranheza do local de que, confesso, não sabia a história. A igreja tem um certo ar de caverna, com o seu tecto vermelho escuro e as paredes e colunas calcinadas pelo fogo. Os vestígios de um incêndio ocorrido em 1959 foram propositadamente deixados presentes aquando da reconstrução. O todo tem um ar misterioso e opressivo que não pode deixar ninguém indiferente. Quando saí fui ler uma placa ali afixada em frente, para tentar obter alguma informação, e apercebi-me então que estava no local onde se iniciaram os massacres de judeus em 1506 e onde tanta gente foi lançada às chamas. O fogo novamente. Ou antes, cronologicamente na história, a surgir pela primeira vez. Investiguei mais um pouco e foi quando descobri que a Igreja de S. Domingos tinha sido, desde esses terríveis acontecimentos, também destruída duas vezes por terramotos: em 1531, poucos anos mais tarde portanto, e no grande abalo de 1755. E não são os sismos também manifestações do fogo que reside no interior da Terra? Comecei então a interrogar-me se todas estas ocorrências seriam apenas coincidência. Eu não acredito em castigos divinos mas que às vezes parece que os há, lá isso parece.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Vidas vazias



Vivem vidas pequeninas por falta de ambição. Ou por medo de arriscar. Vidas vazias. Pedem apenas um homem, não impreterivelmente sempre o mesmo, para um pouco de cama e uns jantares ou umas saídas e, de preferência, que vão pagando as refeições. Contentam-se com pouco. O resto do tempo vivem sós, com os gatos ou cães quando os têm, ocupando-se a mais das vezes em arrumações obsessivas e visitas aos shoppings. Vivem as vidas dos personagens das novelas da televisão, das figuras públicas que aparecem nas revistas ou das pessoas da vizinhança, em vez das próprias. E sobretudo criticam quem vive a vida de forma mais plena sem dar satisfações aos outros, com mal disfarçada inveja. Quem arrisca amar, mesmo que possa ferir-se. Às amigas e conhecidas recomendam o mesmo estilo de vida. Dizem-lhes que assim não têm chatices. Mas, por estranha coincidência, passam o tempo com depressões e doenças dos nervos. Com insónias e melancolias. Às vezes há mágoas passadas que explicam o medo mas não o justificam. A desistência não é solução. Também há homens que vivem assim. Basta trocar os pronomes, as arrumações por bricolagens e as novelas por futebol.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Partilhas



Eram todos muito jovens, recém-chegados à idade adulta. Vinham dos mais diversos pontos do país. Tinham-se conhecido, por acaso, naquela aldeia à beira-mar onde tinham ido veranear, por frequentar a mesma “tasca”. Uma empatia, que não sabiam explicar, os tinha unido quase desde o primeiro dia e autodenominavam-se, orgulhosamente, “brigada do desassossego”. Talvez, também, por uma certa antítese, que não antipatia, por outro grupo de frequentadores mais antigos mas nem por isso muito mais velhos. Passavam os serões em animados duelos de cantigas com o outro grupo, numa rivalidade sem acrimónias e em que a vitória nunca importava. A “tasca” tinha música ao vivo desde que os clientes cantassem. Só se juntavam à noite, no resto do tempo cada um fazia a sua vida. Com o aproximar do fim das férias chegou a véspera do dia em que a maior parte regressaria às respectivas terras. Resolveram, portanto, juntar-se antes de ir para a “tasca” numa sardinhada acompanhada de gaspacho. Reuniram-se no parque de campismo onde a maior parte estava alojada e começaram os preparativos. A parte das sardinhas foi fácil. A logística do gaspacho foi mais difícil mas foi sendo resolvida com desembaraço. Um alguidar de plástico foi a taça, um frasco de compota fez de pilão para moer o tomate com o sal e o alho, o pepino e o pão partidos a preceito. Quando foi para juntar o azeite é que foram elas, não havia. Alguém se lembrou então de uma solução. Pegaram num copo e foram pelas tendas próximas pedir um pequeno gole de azeite a cada vizinho. Claro que a segunda pessoa a quem pediram lhes quis logo emprestar a garrafa para que se servissem do que quisessem, mas recusaram delicadamente e explicaram que só queriam mesmo um bocadinho, para todos pudessem dar. Assistiu-se então a um comovente momento de partilha em que toda a vizinhança participou oferecendo um pouco do seu azeite. Quando chegavam junto das tendas já estava alguém preparado, de garrafa na mão, para fazer a oferta. Chamavam-nos daqui e dali. E o copo acabou por ser pequeno. É tão bonita a partilha quando é feita com o coração. Ninguém ficou mais pobre, mas todos ficaram mais ricos.