David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A culpa é do queijo

Não me lembro. Juro que não me lembro. Eu bem me esforço por me lembrar, mas nada. Não me ocorre nadinha. Népia. Nicles. Zero. Farto-me de puxar pela memória, dou voltas e mais voltas dentro da minha cabeça, mas não me consigo recordar de coisa alguma. Tenho uma vaga ideia. Tão ténue que nem chega a ser mais que um conjunto de fragmentos sem sentido. Só não juro ceguinho porque não sou de juras e sempre ouvi dizer que quem mais jura mais mente. Mas asseguro que é verdade que não me recordo. Não sei o que se passou. Nem o que se passa comigo para não me lembrar assim de nada. Mas a culpa não é minha. Juro que não é minha. Deve ser do queijo. É isso. É por causa disso com certeza. Quem me manda a mim comer tanto queijo.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Haja paciência

Haja paciência! Para as filas, as demoras, a papelada escusada, os passos repetidos gratuitamente por interpretações idiotas e burocráticas. Haja paciência! Para a incompetência, o excesso de zelo, a má educação disfarçada de delicadeza, a má educação sem disfarce nenhum. Haja paciência! Para os obtusos, os confusos, os picuinhas, os cínicos, os parvos. Haja paciência! Para o desrespeito, a falta de respeito, o respeito nenhum. Haja paciência! Para os complicados, os complicadores, os dificultadores. Haja paciência, porra!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O menino e o relógio

De quando em quando sai do quarto numa corrida e espreita a sala. Mais exactamente o relógio grande na parede, com o pêndulo a dar a dar. Não conhece os números, ainda, mas sabe onde tem de estar o ponteiro maior. Se ainda falta muito regressa ao quarto, para voltar pouco depois. Repete este percurso várias vezes no espaço de uma hora. Quando o ponteiro está quase na vertical, a apontar para cima, fica na sala acocorado numa cadeira que está mesmo em frente do relógio. E espera. Quieto. Muito quieto e silencioso. Até que de repente se ouve um estalido e um pequeno pássaro de madeira sai de uma janelinha a cantar cu-cu. E então com uma alegria imensa ele bate palmas e canta com o cuco: cu-cu, cu-cu, cu-cu.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Espera

Não gosto de esperar, mas espero. Espero todos os dias. Espero sempre. Enervo-me. Irrito-me. Angustio-me. Mas continuo a esperar. Parece ter sido sempre assim a minha vida. Uma espera. E as esperas são sempre longas. Reclamo, mas espero. Protesto, mas espero. Queixo-me, mas espero. Sempre. Numa ansiedade crescente. Espero. E enervo-me comigo. Irrito-me comigo. Reclamo comigo. Por esperar. Por continuar a esperar. Por continuar, dia a dia, a esperar-te.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Bola Rosa

Meço mentalmente a distância da bola rosa ao buraco. Depois a distância da bola branca à bola rosa. Avalio a força necessária. Dobro-me sobre a mesa e ensaio a posição do taco sobre a dobra do polegar. Levanto-me. Calculo onde deve parar a bola branca para embolsar a próxima bola. O efeito a fazer. Concentro-me. Não posso falhar. Se a bola rosa não entrar acabou tudo. Não haverá mais nenhuma oportunidade. Se acertar mantenho-me em jogo. Posso dar a volta ao resultado. Preciso ainda da próxima bola, mas essa não será difícil. Principalmente se deixar a branca bem posicionada. Dobro-me novamente sobre a mesa. Faço deslizar o taco. Hesito. Ergo-me e recalculo tudo. Retomo a posição de tacar. Fixo o ponto da bola branca onde o taco tem de acertar, lá mais à frente a bola rosa e ao fundo o buraco no canto esquerdo onde ela tem de entrar. Tem de entrar. Não fecho os olhos mas é como se os fechasse. Esvazio o cérebro. Tento apenas sentir. Torno a focar o olhar. Respiro fundo. Puxo o taco atrás lentamente. Preparo o efeito. Suspendo a respiração. E taco.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

No Carnaval

No Carnaval nada parece mal. Podemos deixar a máscara em casa e andar por aí a assumir livremente o nosso eu. O que verdadeiramente somos e como somos. Com a vantagem de os outros julgarem que são os únicos a fazê-lo e não nos levarem a sério. Afinal é o que nós próprios fazemos. Nestes dias desvendamo-nos realmente e não julgamos ninguém para que não nos julguem a nós. Era o que mais faltava andar por aí alguém, mal-intencionado, a registar como ficamos sem máscara. É um acordo tácito que permite a manutenção da sociedade em que vivemos. E a nós uns dias de escape. Viva a folia! Os outros, os que nunca usam máscara, os que se mostram sempre de cara lavada em todos os dias do ano, sem disfarces nem máscaras, são os chatos que não brincam ao Carnaval.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

O fogo e o fumo

Não há fumo sem fogo. Não há fogo sem fumo. Estão sempre juntos como um par ideal. Casamento perfeito e no entanto perigoso. Foi no céu ou no inferno que estes dois se juntaram? O fogo tanto é fonte de vida como causa de morte. O fumo tanto serve de aviso como oculta o perigo. O que o fogo poupa, por vezes o fumo mata. O que ao fumo escapa, raro o fogo perdoa. Mas sempre andam juntos, mesmo que um deles mal se enxergue. Se há um, lá está o outro. Se fuma é porque arde. Se há chama fumega. Haverá amor maior do que este afinal?

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A ausência

A ausência magoa. Todas as ausências. Se não dói não é ausência, chama-se alívio. Há portanto afastamentos que até são um refrigério. Vai e não voltes tão depressa. Ou nunca. Faz-nos lá o favor de ir morrer longe. Mas quando é ausência oprime-nos o coração e lacera-nos de saudade. Sentimo-la no corpo todo. A lembrança do outro não nos sai da cabeça. Está mais presente em nós, às vezes, do que quando estava ali ao nosso lado e bastava estender a mão para lhe tocar ou apurar o ouvido para ouvir a sua respiração. A ausência é corrosiva. Mói, mói até nos deixar buracos na alma.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Fábula peruviana

Lá na herdade, o mais estúpido não é o asno. O burro é até dos mais inteligentes. Sabem-no bem outros povos que aos mais néscios chamam perus. E temos de concordar, que com possível excepção das ovelhas, serão os galináceos e aparentados os mais lerdos. Até as cabras são mais ladinas que as suas primas. Basta reparar bem no olhar de galinhas e ovinos, para perceber o vazio que lhes vai dentro. Os perus então nem se fala, é o vácuo total. No entanto é vê-los, aos perus, a pavonear-se pela quinta, todos emproados, a grugulejar tão alto que parecem abafar as vozes de todos os outros. Fazem uma barulheira que não se aguenta. Mas já nem sei por que me terá ocorrido esta ideia. Não estava a fazer nada relacionado com agricultura. Talvez seja por andar com algum problema auditivo, já que, cada vez mais, me parece ouvir à minha volta gluglu, gluglu, gluglu.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Comboio nocturno

O comboio avançava ruidosamente na noite brumosa. A escuridão era quase total. O homem, sozinho no compartimento, tinha apagado as luzes e estendera-se nos bancos, com a mochila por travesseiro, tentando dormir um pouco. Conseguira adormecer há pouco, de tal modo que não se tinha apercebido da paragem do comboio, quando sentiu abrir a porta do compartimento e entrar gente. Ouviu vozes de mulher que logo se extinguiram passando a um sussurro. As luzes continuaram apagadas. Abriu os olhos e enxergou duas mulheres que o olhavam sentadas na obscuridade. Fez menção de se levantar, mas elas, continuando a falar baixo, logo lhe disseram para não se incomodar. Podia dormir descansado. Elas sairiam numa das próximas estações e prometiam não o incomodar. Agradeceu e voltou a fechar os olhos, dormitando, embora se sentisse constrangido por estar ali deitado com duas mulheres a olhá-lo. Pareciam velá-lo. As mulheres foram falando em surdina até que lentamente se calaram. Descerrou disfarçadamente um olho e espreitou. Uma das mulheres dormitava enquanto a outra olhava para a janela, embora por ela não entrasse senão negrume. Deixou-se adormecer então, enquanto pensava como era estranho, ao mesmo tempo, aquelas pessoas, um homem e duas mulheres que não se conheciam de lado nenhum, estarem ali a dormir juntas no mesmo compartimento acanhado. Era uma daquelas situações que só era possível em viagem. Acordou com a mulher que ia acordada levantada a espreitar pela janela e chamar a outra. Estavam a chegar ao apeadeiro delas. Saíram apressadamente enquanto se desculpavam por tê-lo acordado e lhe desejavam um bom resto de viagem. Tornou a ficar sozinho no compartimento. O comboio tornou a arrancar com um gemido e ganhou balanço rapidamente. Continuou deitado mas, estranhamente, não conseguiu tornar a adormecer.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A dúvida

A dúvida cresce insidiosa dentro do peito. Devia dizer que cresce na cabeça, mas é no peito que se sente. Naquela sensação de vazio que, por antítese, o preenche. Naquela mágoa que faz bater mais forte o coração. Naquela sensação que não é dor, mas quase. A cabeça a afastar os pensamentos e o coração a bater, a bater. A não deixar afastar a dúvida. A trazer de volta os pensamentos. Como uma maré cheia de vazio.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Praia

Chegar à praia cedo. Só gaivotas e cheiro a algas no ar. E o marulhar das ondas num areal virgem de pegadas. Pisar a areia como quem faz uma conquista ou descobre novas terras. Deixar as marcas dos pés bem vincadas na areia num avanço rectilíneo até ao mar. Continuar a andar paralelo à praia mas sempre dentro de água. Deixar a dúvida em quem chegar a seguir se alguém se foi deitar a afogar de madrugada!