David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Crónica de um renascimento

E pronto! Do blogue para o papel! Aí está o livro!
Com muito do que aqui fui publicando e outros que nunca aqui chegaram a aparecer.
Os lançamentos em Leiria e Coimbra correram bem. As críticas estão a ser boas.
Quem quiser adquirir é favor contactar-me directamente que o livro não vai estar nas livrarias.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Num jorro



Às vezes é assim. As palavras rompem de madrugada. De repente. Sem aviso. Como água que corre, encontram o seu percurso . Ficam logo alinhadas. Arrumadas no sítio certo. E quando as passamos ao papel é como se outro as escrevesse. Ou no-las ditasse ao ouvido. Num jorro. Depois é como se só nesse momento despertasse. É só arranjar um pouco. Corta aqui. Apara ali. Acrescenta uma virgula acolá. Limpa um ruído que arranha a sensibilidade. E fica pronto. Mas sempre com a estranha sensação de não sabermos donde vieram as palavras.

quarta-feira, 16 de março de 2016

A ironia dos nomes

José Felicíssimo da Costa não foi um homem realizado. O pai lhe deu esse nome por ter sido um filho muito desejado, mas que tardou em chegar. Por isso lhe deu o nome de como se estava a sentir. Mas a mãe nunca recuperou totalmente da gravidez de risco e do parto difícil. Ficou sempre uma mulher frágil e doente que acabou por falecer quando Felicíssimo era ainda criança. O pai, apesar da alegria que era ver o filho a crescer, com a morte da mulher tornou-se um homem acabrunhado que tentava esconder a tristeza sem o conseguir. José Felicíssimo cresceu neste ambiente e, influenciado por ele ou já de naturais tendências, tornou-se um homem melancólico. Nada lhe parecia correr bem na vida, embora não se pudesse dizer que lhe corresse propriamente mal. Andava sempre em busca de algo que justificasse o nome. Por isso quando conheceu Maria Felicidade da Silva pensou que ela era a mulher indicada para si. E que, de algum modo, a sua busca chegara ao fim. Também ela era uma alma inquieta incansavelmente à procura nem ela sabia bem de quê. E fazia jus ao nome, pois picava por tudo e por nada. Enamoraram-se perdidamente. Casaram e foram infelizes para sempre.

terça-feira, 8 de março de 2016

Uma mulher de fibra



Nasceu no fim do século XIX. Mas era uma mulher fora do seu tempo. Muito independente, tinha sido ela, ainda muito jovem jovem, a ficar à frente do negócio da família depois da morte prematura do pai. Pelo menos até os credores lhes tirarem tudo. Ficou sempre solteira. Tivera apenas um namorado que morrera numa tristemente célebre catástrofe da cidade, soterrado, com outros colegas bombeiros, quando desabou o telhado do prédio cujo incêndio combatiam. Não lhe conheceram outro. Não teria sido fácil. Aquela mulher de fibra nunca teria admitido que um homem mandasse nela e nunca teria gostado de um homem que permitisse que ela mandasse nele. Diziam que tinha herdado o mau feitio da avó, uma pessoa de mau génio que, contava a lenda familiar, quando estava já no leito de morte, ainda tinha dado uma bofetada ao neto quando o tinham levado a despedir-se dela, por estar ranhoso. Sempre a conheci com os seus vestidos largos e decotados, detestava sentir-se apertada, e sapatos rasos de tira. Sempre se limpou só a toalhas de linho. Nunca esteve doente de cama excepto os três últimos dias de vida. Poucas semanas antes de morrer, aquela mulher austera, a quem nunca tinha sido ouvida uma palavra menos própria, teve esta tirada exemplar, quando alguém falou em velhos na sua presença: os velhos estão-se a cagar para os novos. Morreu de velhice cumprindo, assim, o maior objectivo de qualquer vida.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Ausentou-se



E de repente, um dia, foi-se embora. Ausentou-se. Desapareceu. Ninguém notou. Porque o corpo continuava ali. A andar no meio dos outros. A comer, a beber e a dormir. Mas por dentro já se tinha escapulido. Já lá não estava. Já não lhe interessava lá estar. Houve quem se apercebesse de que algo estava diferente. Mas ninguém entendeu exactamente o que se passava. E, também, ninguém se interessou o suficiente para tentar entender. Interpretaram-no como mais uma das suas peculiaridades. Sempre tinha sido considerado excêntrico. Passou os últimos anos em viagens e sítios que só ele conheceu. Quando morreu, toda a gente se admirou de ele ter ficado com um sorriso congelado nos lábios.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O sonho fez-se verbo



O sonho fez-se verbo. E o verbo poema. Ou seja, sonho novamente. E amor. Sonhaste gente e criaste gente. Gente que encarnou no verbo. Gente sonhada e concretizada. Amada. Viva. Sonhos sonhados. Sonhos apetecidos. Vividos. Sonhos, alcançados ou não, sempre lutados. E o amor fez-se verbo e o verbo poema. E em poema transformaste a solidão e o desengano. A desilusão e o maravilhamento. O vento e a calmaria. O mar e a lagoa. A flor e o espinho. A dor e o prazer. A vida. Porque percebeste que a vida é tudo e tudo é poema.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Princesa



Quando era pequena julgava que era uma princesa. A sério que julgava. Afinal de contas até vivia num palácio igualzinho às gravuras dos livros de histórias. Eu bem estranhava que o meu palácio só tivesse três assoalhadas contando com a cozinha, mas como tinha torres com telhados em bico e ameias continuava convencida que era princesa. Também estranhava não ter aias nem criados e que a minha mãe passasse os dias na cozinha, vestida de rainha e com uma coroa na cabeça, a fazer comida e a passar o chão a pano de joelhos, mas julgava que era uma excentricidade da realeza. Não estranhava muito não ter casa de banho porque já tinha ouvido dizer que nos castelos era coisa que não havia e, de qualquer maneira, lá na aldeia ninguém tinha. O que mais me fazia confusão era o meu pai, em vez de coroa e manto, trazer vestido um fato de macaco e um boné da tropa todos borrados de tinta e, em vez de andar de coche, chegar a casa num triciclo motorizado carregado de latas e pincéis e um escadote. Mas como na escola todos se riam muito para mim e me chamavam princesinha, vivia num palácio igualzinho às gravuras dos livros de histórias, com torres com telhados em bico, e andava sempre vestida de princesa, as minhas dúvidas acabavam. Só mais tarde descobri que o meu pai era pintor da construção civil e tinha sido emigrante. E quando regressou de França tinha resolvido fazer uma casa igualzinha aos palácios dos livros de histórias. E a partir desse dia para se vingar a minha mãe passou a vestir-se de rainha. E a mim de princesa.