Era o coveiro da aldeia. Bebia muito, o que parece ser inerente à profissão.
Ganhava à tarefa. Abrir e fechar covas. Arranjar campas. Limpar o único jazigo
do cemitério. Entre o que fazia e o que bebia nunca tinha conseguido passar da
cepa torta. Muito menos arranjar mulher. As do seu tempo queriam era emigrar e
livrar-se duma vida demasiado dura. E ele ali estava, agarrado à terra, entre o
cemitério e o balcão da taberna. Quando a povoação ainda ia florescendo e o trabalho
não faltava, ia conseguindo sobreviver razoavelmente, quer com os habitantes,
quer com os emigrantes que queriam ser enterrados em solo pátrio. Mas com o
tempo os mortos foram rareando e os serviços também. Não havia enterros nem
arranjos para fazer. As campas foram sendo descuidadas e até o jazigo dos
senhores da terra ficou abandonado. Também os trabalhos que ia fazendo no
campo, sazonalmente, para arredondar o orçamento, desapareceram com a falta de
gente. A aldeia ia ficando deserta aos poucos. Começou, então, a passar fome.
Ao princípio valeu-lhe o dono da venda que lhe ia fiando. Mas, depois de lhe
fazer o enterro, as poucas pessoas que restavam aviavam-se numa carrinha dum vendedor
ambulante que não fiava a ninguém. Andava já desesperado quando a morte de um
vizinho, envenenado por cogumelos, lhe deu uma ideia. Primeiro resistiu. Mas depois
a fome falou mais alto. Conhecia bem os fungos e as ervas, pelo que sabia
distinguir, perfeitamente, os comestíveis dos mortais. Por isso, quando já não
aguentou mais a barriga vazia, colheu alguns dos mais mortíferos e visitou um dos
vizinhos mais velhos e doentes. E, aproveitando uma distração, deitou-lhos bem picadinhos
no caldo. Foi tiro e queda. O homem morreu, ninguém desconfiou, e ele lá ganhou
a jorna que lhe deu para mais uns tempitos. E assim foi repetindo o processo,
em períodos de maior carestia, sem que alguém, alguma vez tivesse desconfiado. Só
o fazia como último recurso, para não levantar suspeitas. Até que, de morto em
morto, de morte matada ou natural, se acabou a gente na aldeia. Já só restava ele.
Assim que as filhas do falecido, os homens da funerária e o padre se foram
embora desenterrou outra vez o cadáver. Roubou-lhe o caixão e tornou a sepultá-lo
embrulhado numa manta. A seguir reparou e limpou muito bem o jazigo. Pôs o caixão
no último espaço livre. Lavou-se e vestiu o fato de ir à missa. Depois cozinhou
uma pratada de cogumelos. Comeu-os todos. Foi deitar-se no caixão e fechou a
tampa.
David Teles Ferreira
aqui vou publicando o que vou escrevendo
segunda-feira, 30 de novembro de 2015
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
Ela
O dia era Domingo. Ela chegou com o seu ar gaiato que não revelava os
três filhos pequenos. Chegou sozinha. Momentaneamente abandonado o ar diligente
e atarefado de esposa e mãe. Antes com o ar leve de quem não tem ninguém ao seu
encargo senão ela própria. Pediu sopa, segundo, salada, sobremesa. Para beber,
um copo de sumo de laranjas acabadas de espremer. Sentou-se à mesa com um
suspiro satisfeito. Bebeu um pouco de sumo com ar deliciado e o sol, até aí
encoberto, abriu radioso, como se até ele quisesse tornar aquele instante ainda
mais perfeito. Comeu a sopa. Não deixou que um cabelo encontrado na salada lhe
perturbasse o momento, e após curta reflexão, atirou-o fora, decidida. Comeu a
salada toda mas deixou um pouco de arroz e carne no prato. Acabou o sumo.
Agarrou na colher. Limpou-a com o guardanapo. Comeu o doce. Primeiro em
pequenos pedaços, depois em grandes colheradas. Como se em vez de o saborear
satisfizesse uma fome antiga. A seguir, desfez a pose descontraída, arrumou os
pratos no tabuleiro e levou-o ao balcão. Foi-se embora com um ar esbelto e
desempoeirado a que a ruga entre as sobrancelhas emprestava agora um toque de
pesada seriedade.
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
Poetisa
Senhor! Chegue aqui, por favor. Venha cá falar
comigo. Não tenha medo. Eu sei que é intimidante vir a este hospital, mas aqui
nem todos são doidos. Muito menos perigosos. Pelo menos não mais do que os que
andam lá fora. Eu sei-o bem, acredite. Estou aqui para escapar, não por ser
doida. Não me adapto ao mundo lá de fora. Ou ele a mim. Eu tentei, juro, mas
não consegui. Desde sempre. Fui, desde que nasci, uma criança estranha, diziam.
Ficava horas a olhar as plantas e os insectos. Gatinhava até às flores para
cheirá-las e ria e chorava ao mesmo tempo com o seu aroma. Ao invés dos outros miúdos
não esmagava as formigas nem tirava as asas às moscas. Nunca desfolhei uma
flor. Assim cresci, solitária e sujeita à constante troça dos demais. A escola,
então, foi um suplício, só mitigado por a professora gostar de mim. Era bem
comportada e aplicada. E tinha verdadeiro prazer em aprender. Adorava quando a
professora contava a história ou lia estórias e poemas. Chegava a chorar de
emoção ao ouvi-la. Por isso me chamavam anormal. Deixei a escola cedo mas nunca
me esqueci do que lá aprendi. Também cedo fiquei só, por morte da minha mãe,
que meu pai já abalara há muito. Trabalhava aqui e ali, mal ganhando para
comer, mais por pena de algumas pessoas boas, embora fosse diligente e
esforçada. Mas o estigma de louca nunca me abandonava. Começaram a acusar-me de
ter ataques de poesia. Verdade! E tudo por, de quando em vez, falar em verso.
Sempre tive jeito para rimas e gostava de brincar com as palavras. Por isso me
chamavam poetisa e outras coisas. Na minha terra, poetisa é dos piores insultos
que pode haver. Sei agora, depois destes anos todos, que era medo o que
sentiam. Medo da diferença e de uma mulher que queria pensar pela sua cabeça.
Uma pessoa que pensa é assustadora no meio em que cresci. Por isso me mandaram
para aqui, e nem sabem o favor que me fizeram. Cá sou feliz. É muito tranquilo.
Ninguém nos julga por sermos diferentes. Aqui é normal ser-se diferente. Dão-me
trabalhos para fazer e gostam da maneira como os executo. Têm uma biblioteca
cheia de livros que vou lendo e relendo um por um. E até apreciam os meus
versos. Também me chamam poetisa, mas é um elogio. Como sabem da história dizem,
Tiveste mais um ataque de poesia e que lindo poema escreveste.
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
A realidade é uma chatice
A realidade é uma chatice. É muito mais agradável
viver no mundo dos sonhos. Ou no virtual, para quem tem menos imaginação e
precisa que lhe sirvam fantasias empacotadas. É a Julinha da tabacaria, que é
uma rapariga jeitosa como poucas e que ambicionávamos namorar, que para nós não
passa do sorriso de circunstância e se derrete com o Zeca do restaurante. É
aquele negócio em que julgávamos ir ganhar uma pipa de massa, mas em que,
depois de pagarmos as taxas e impostos, ainda ficamos a arder com umas milenas.
É o curso que nos ia transformar em doutor cheio de estatuto e dinheiro e,
afinal, só serve para trabalharmos no call center pelo ordenado mínimo e a
recibo verde. A realidade é lixada. Troca-nos as voltas constantemente. Às
vezes traz-nos sorte, mas a mais das vezes é uma merda. Trama-nos quando menos
esperamos. Perdemos quando achávamos que tínhamos ganho. Tira-nos das mãos algo
que já considerávamos certo. Ficamos sós quando já pensávamos ter nas mãos um
amor para toda a vida. Ou, pior ainda, esse ser adorado que imaginámos doce,
nos sai mais amargo que um limão. E não adianta tentar trocar-lhe as voltas e
fazer batota, subvertê-la, que isso só é fácil no nosso imaginário, na pantalha
ou no ecrã do computador. Não adianta fingir que não está a chover quando, na
verdade, cai água do céu a potes, que de certeza nos iremos molhar se sairmos à
rua. Podemos é proteger-nos com guarda-chuva e gabardina para minimizar a
molha. Ou, então, esperar que a borrasca passe. A realidade uma chatice, mas é
o que é, e nada mais.
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
O contador de histórias
António gostava de contar
histórias. Tinha muitas e nunca se cansava de as contar. Mas começou a notar
que estava a ficar sem ouvintes. Os seus amigos e conhecidos estavam a ficar
cansados de ouvir as suas narrativas. Foi então que teve uma ideia. Precisava
de ouvintes novos e sempre diferentes. Por isso montou um hotel. Um hotel é um
bom sítio para quem tem histórias para contar. Ter um hotel. Pode-se, desse
modo, contar sempre as mesmas histórias porque quem as ouve, escuta-as pela
primeira. Assim somos eternamente apreciados. O senhor tem tantas histórias
bonitas, falam. E nunca te dizem que já ouviram essa história. Nunca pensam que
somos chatos. Porque para os clientes, gente de passagem, as histórias são
mesmo novas.
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