David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O coveiro



Era o coveiro da aldeia. Bebia muito, o que parece ser inerente à profissão. Ganhava à tarefa. Abrir e fechar covas. Arranjar campas. Limpar o único jazigo do cemitério. Entre o que fazia e o que bebia nunca tinha conseguido passar da cepa torta. Muito menos arranjar mulher. As do seu tempo queriam era emigrar e livrar-se duma vida demasiado dura. E ele ali estava, agarrado à terra, entre o cemitério e o balcão da taberna. Quando a povoação ainda ia florescendo e o trabalho não faltava, ia conseguindo sobreviver razoavelmente, quer com os habitantes, quer com os emigrantes que queriam ser enterrados em solo pátrio. Mas com o tempo os mortos foram rareando e os serviços também. Não havia enterros nem arranjos para fazer. As campas foram sendo descuidadas e até o jazigo dos senhores da terra ficou abandonado. Também os trabalhos que ia fazendo no campo, sazonalmente, para arredondar o orçamento, desapareceram com a falta de gente. A aldeia ia ficando deserta aos poucos. Começou, então, a passar fome. Ao princípio valeu-lhe o dono da venda que lhe ia fiando. Mas, depois de lhe fazer o enterro, as poucas pessoas que restavam aviavam-se numa carrinha dum vendedor ambulante que não fiava a ninguém. Andava já desesperado quando a morte de um vizinho, envenenado por cogumelos, lhe deu uma ideia. Primeiro resistiu. Mas depois a fome falou mais alto. Conhecia bem os fungos e as ervas, pelo que sabia distinguir, perfeitamente, os comestíveis dos mortais. Por isso, quando já não aguentou mais a barriga vazia, colheu alguns dos mais mortíferos e visitou um dos vizinhos mais velhos e doentes. E, aproveitando uma distração, deitou-lhos bem picadinhos no caldo. Foi tiro e queda. O homem morreu, ninguém desconfiou, e ele lá ganhou a jorna que lhe deu para mais uns tempitos. E assim foi repetindo o processo, em períodos de maior carestia, sem que alguém, alguma vez tivesse desconfiado. Só o fazia como último recurso, para não levantar suspeitas. Até que, de morto em morto, de morte matada ou natural, se acabou a gente na aldeia. Já só restava ele. Assim que as filhas do falecido, os homens da funerária e o padre se foram embora desenterrou outra vez o cadáver. Roubou-lhe o caixão e tornou a sepultá-lo embrulhado numa manta. A seguir reparou e limpou muito bem o jazigo. Pôs o caixão no último espaço livre. Lavou-se e vestiu o fato de ir à missa. Depois cozinhou uma pratada de cogumelos. Comeu-os todos. Foi deitar-se no caixão e fechou a tampa.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Ela



O dia era Domingo. Ela chegou com o seu ar gaiato que não revelava os três filhos pequenos. Chegou sozinha. Momentaneamente abandonado o ar diligente e atarefado de esposa e mãe. Antes com o ar leve de quem não tem ninguém ao seu encargo senão ela própria. Pediu sopa, segundo, salada, sobremesa. Para beber, um copo de sumo de laranjas acabadas de espremer. Sentou-se à mesa com um suspiro satisfeito. Bebeu um pouco de sumo com ar deliciado e o sol, até aí encoberto, abriu radioso, como se até ele quisesse tornar aquele instante ainda mais perfeito. Comeu a sopa. Não deixou que um cabelo encontrado na salada lhe perturbasse o momento, e após curta reflexão, atirou-o fora, decidida. Comeu a salada toda mas deixou um pouco de arroz e carne no prato. Acabou o sumo. Agarrou na colher. Limpou-a com o guardanapo. Comeu o doce. Primeiro em pequenos pedaços, depois em grandes colheradas. Como se em vez de o saborear satisfizesse uma fome antiga. A seguir, desfez a pose descontraída, arrumou os pratos no tabuleiro e levou-o ao balcão. Foi-se embora com um ar esbelto e desempoeirado a que a ruga entre as sobrancelhas emprestava agora um toque de pesada seriedade.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Poetisa



Senhor! Chegue aqui, por favor. Venha cá falar comigo. Não tenha medo. Eu sei que é intimidante vir a este hospital, mas aqui nem todos são doidos. Muito menos perigosos. Pelo menos não mais do que os que andam lá fora. Eu sei-o bem, acredite. Estou aqui para escapar, não por ser doida. Não me adapto ao mundo lá de fora. Ou ele a mim. Eu tentei, juro, mas não consegui. Desde sempre. Fui, desde que nasci, uma criança estranha, diziam. Ficava horas a olhar as plantas e os insectos. Gatinhava até às flores para cheirá-las e ria e chorava ao mesmo tempo com o seu aroma. Ao invés dos outros miúdos não esmagava as formigas nem tirava as asas às moscas. Nunca desfolhei uma flor. Assim cresci, solitária e sujeita à constante troça dos demais. A escola, então, foi um suplício, só mitigado por a professora gostar de mim. Era bem comportada e aplicada. E tinha verdadeiro prazer em aprender. Adorava quando a professora contava a história ou lia estórias e poemas. Chegava a chorar de emoção ao ouvi-la. Por isso me chamavam anormal. Deixei a escola cedo mas nunca me esqueci do que lá aprendi. Também cedo fiquei só, por morte da minha mãe, que meu pai já abalara há muito. Trabalhava aqui e ali, mal ganhando para comer, mais por pena de algumas pessoas boas, embora fosse diligente e esforçada. Mas o estigma de louca nunca me abandonava. Começaram a acusar-me de ter ataques de poesia. Verdade! E tudo por, de quando em vez, falar em verso. Sempre tive jeito para rimas e gostava de brincar com as palavras. Por isso me chamavam poetisa e outras coisas. Na minha terra, poetisa é dos piores insultos que pode haver. Sei agora, depois destes anos todos, que era medo o que sentiam. Medo da diferença e de uma mulher que queria pensar pela sua cabeça. Uma pessoa que pensa é assustadora no meio em que cresci. Por isso me mandaram para aqui, e nem sabem o favor que me fizeram. Cá sou feliz. É muito tranquilo. Ninguém nos julga por sermos diferentes. Aqui é normal ser-se diferente. Dão-me trabalhos para fazer e gostam da maneira como os executo. Têm uma biblioteca cheia de livros que vou lendo e relendo um por um. E até apreciam os meus versos. Também me chamam poetisa, mas é um elogio. Como sabem da história dizem, Tiveste mais um ataque de poesia e que lindo poema escreveste.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A realidade é uma chatice



A realidade é uma chatice. É muito mais agradável viver no mundo dos sonhos. Ou no virtual, para quem tem menos imaginação e precisa que lhe sirvam fantasias empacotadas. É a Julinha da tabacaria, que é uma rapariga jeitosa como poucas e que ambicionávamos namorar, que para nós não passa do sorriso de circunstância e se derrete com o Zeca do restaurante. É aquele negócio em que julgávamos ir ganhar uma pipa de massa, mas em que, depois de pagarmos as taxas e impostos, ainda ficamos a arder com umas milenas. É o curso que nos ia transformar em doutor cheio de estatuto e dinheiro e, afinal, só serve para trabalharmos no call center pelo ordenado mínimo e a recibo verde. A realidade é lixada. Troca-nos as voltas constantemente. Às vezes traz-nos sorte, mas a mais das vezes é uma merda. Trama-nos quando menos esperamos. Perdemos quando achávamos que tínhamos ganho. Tira-nos das mãos algo que já considerávamos certo. Ficamos sós quando já pensávamos ter nas mãos um amor para toda a vida. Ou, pior ainda, esse ser adorado que imaginámos doce, nos sai mais amargo que um limão. E não adianta tentar trocar-lhe as voltas e fazer batota, subvertê-la, que isso só é fácil no nosso imaginário, na pantalha ou no ecrã do computador. Não adianta fingir que não está a chover quando, na verdade, cai água do céu a potes, que de certeza nos iremos molhar se sairmos à rua. Podemos é proteger-nos com guarda-chuva e gabardina para minimizar a molha. Ou, então, esperar que a borrasca passe. A realidade uma chatice, mas é o que é, e nada mais.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O contador de histórias



António gostava de contar histórias. Tinha muitas e nunca se cansava de as contar. Mas começou a notar que estava a ficar sem ouvintes. Os seus amigos e conhecidos estavam a ficar cansados de ouvir as suas narrativas. Foi então que teve uma ideia. Precisava de ouvintes novos e sempre diferentes. Por isso montou um hotel. Um hotel é um bom sítio para quem tem histórias para contar. Ter um hotel. Pode-se, desse modo, contar sempre as mesmas histórias porque quem as ouve, escuta-as pela primeira. Assim somos eternamente apreciados. O senhor tem tantas histórias bonitas, falam. E nunca te dizem que já ouviram essa história. Nunca pensam que somos chatos. Porque para os clientes, gente de passagem, as histórias são mesmo novas.