David Teles Ferreira

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

F***-se



Foda-se! Almeida! admoestou-o Cardoso, antes de exclamar, Foda-se! ao aperceber-se de quem tinha à sua frente: a mulher do presidente da república encontrava-se inanimada no sofá, apenas vestida com meias de rede e um cinto de ligas, suja de sangue e com uma faca na mão. Respirava visivelmente, pelo que estava viva. Na cama jazia um corpo de homem totalmente nu, de tal forma esfaqueado que o torso era uma massa informe e o sangue tinha escorrido até à alcatifa.
Estamos fodidos, Cardoso, disse Almeida, empurrando o quépi para a nuca, não há forma de sairmos bem disto. Almeida, que era da oposição, ainda olhou para o corpo do homem, com a secreta esperança de que fosse o presidente, mas logo verificou que era demasiado jovem para ser ele. Além disso era negro. Nem essa consolação tenho, pensou, fodido e mal pago como sempre. Que vamos fazer? Perguntou Cardoso. Tens a certeza que a senhora é quem estamos a pensar? respondeu Almeida. Não, pois não. Pode ser apenas uma pessoa muito parecida. Então vai ser bai de buque, fodidos por fodidos fazemos tudo direitinho. E nunca percebemos quem era a senhora, capisce? Nem passámos da porta para não estragar as provas como a PJ está sempre a recomendar. Certo, Almeida, tens razão. Vou ligar ao 112. Eu ligo para a PJ. Sabes, não sei se fiquei parado à porta por causa do cadáver, se da visão da primeira-dama nestes preparos. Está calado, pá, nem me fales, respondeu Cardoso com um estremecimento de repulsa.
Almeida ligou para o piquete da PJ e quando ouviu a voz do Inspector Vasco não conseguiu definir se ficou chateado ou aliviado. José Vasco era um bom amigo e detestava vê-lo envolvido naquele caso, mas por outro lado confiava nele para que nada fosse abafado. E queria ver a reacção dele ao ver o quadro que tinha à sua frente. À cautela recomendou-lhe que se despachasse para chegar antes do INEM e de preferência sem companhia. E agora, que fazemos? perguntou Cardoso. Vais lá para baixo esperar o INEM que eu monto guarda à porta. E já que és tão católico reza para a senhora não acordar antes de eles chegarem, senão temos o caldo entornado ainda mais do que já está.
José Vasco foi o primeiro a chegar e vinha sozinho. Entrou no quarto e voltou para trás quase imediatamente: Porra Almeida, podias ter avisado, tenho a minha vida sexual estragada para mais de uma semana. Não sabia que a visão de cadáveres esventrados te afectava tanto, julguei que ao fim destes anos todos já estavas calejado.Vai-te foder, Almeida, sabes bem ao que me refiro. Não confirmo nem desminto, mas tenho estado aqui a pensar numa coisa. Diz-me cá enquanto o Cardoso e o INEM não chegam. Se a senhora é quem estamos a pensar não devia haver seguranças? Os dois polícias olharam-se por um instante em silêncio e tomados pela mesma ideia precipitaram-se ao mesmo tempo para dentro do quarto. Uma vista de olhos mais atenta, mesmo da porta, pela roupa do homem amontoada na cadeira revelou a ponta do coldre da arma oficial a espreitar por baixo da camisa. Tinham encontrado o segurança. Pelo menos tinham sexo seguro, disse o inspector da PJ. Almeida saiu a correr enquanto dizia: eu não vi nada, isto agora é contigo, sou muito teu amigo mas sou só um agente da PSP. Não me posso deixar meter em caldeiradas destas. Se precisares de mim estou à porta. Ouve lá, perguntou Vasco de dentro do quarto, como que vieram dar com isto. Um telefonema anónimo de alguém que dizia ser um vizinho incomodado pelo barulho e receoso de estar alguém em perigo. Número não identificado. Quando chegámos estava tudo em silêncio, mas o parvo do Cardoso resolveu experimentar o puxador da porta e ela abriu-se logo. Foi quando vimos esse lindo espectáculo.
Pouco depois chegava o cortejo completo: Cardoso, o pessoal do INEM e logo atrás o resto da brigada da PJ. E no momento em que entraram no apartamento, demonstrando um timing perfeito, a senhora acordou. Almeida espreitou e a custo conseguiu conter uma gargalhada ao ver a expressão caricata, tanto dos que tinham acabado de entrar como da primeira-dama, todos de olhos arregalados a olhar uns para os outros. A única excepção foi o médico ucraniano do INEM que, não reconhecendo a senhora, se precipitou a socorrê-la, o que fez com que, quebrado o impasse, ela começasse a gritar desalmadamente. Todos se começaram então a mexer e a executar as suas tarefas como se os gritos tivessem ligado algum interruptor, mostrando-se concentradíssimos no que faziam para tentar evitar mostrar que a tinham reconhecido. Mas os gritos, ao invés de pararem, aumentaram cada vez mais de volume, numa algaraviada em que só a custo se distinguiam palavras como matei-o, traidor e alguns palavrões completamente inapropriados na linguagem de uma senhora, ainda para mais primeira-dama. Vasco segredou qualquer coisa ao ouvido do médico que o deixou atarantado e o fez apressar a dar uma injecção na senhora, que logo sossegou, para alívio de todos os presentes. E mais aliviados ficaram quando a levaram para o hospital.

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