David Teles Ferreira

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A gaveta



Quando lhe ligaram do hospital a dizer que o pai tinha falecido foi apanhado de surpresa. Nem sabia que ele estava doente, muito menos internado. Falavam-se raramente. Quase sempre telefonemas breves. Nunca tinham sido próximos. Ele culpava o pai por isso. Um pai sempre ausente, mesmo quando estava presente. Sempre ocupado com as suas coisas, que ele nunca tinha conseguido saber exactamente em que consistiam. Chegava a casa e fechava-se na sua salinha, onde ele não era autorizado a entrar, e só saía para as refeições que eram tomadas em silêncio, à moda antiga. Nunca lhe tinha perguntado pela escola. Por namoradas. Pela vida. Bom dia, boa tarde. Um ocasional roçar de mão pela cabeça quando era mais miúdo. Nunca um, Como estás? Parecia que ele era invisível. Que nem dava pela existência dele. A mãe, pelo contrário, tinha sido tudo para ele. Estava sempre ao seu lado. Falavam de tudo sem peias nem segredos. Talvez para compensar o feitio fechado do marido. E ele retribuíra o amor e atenção maternos. Eram sempre os dois para tudo. Uma unidade. Não precisavam de mais ninguém. Por isso, quando a mãe morreu, saiu de casa e afastou-se. Pagou ao pai na mesma moeda. Organizou a sua vida noutra cidade, que não lhe lembrasse a ausência dolorosa da mãe, e contactava o pai o mínimo indispensável a ficar de bem com a sua consciência. E, mesmo isso, apenas porque a mãe lho tinha pedido antes de morrer.
Quando chegou a hospital verificou que o pai tinha deixado tudo pago e disposto acerca dos procedimentos do funeral e que só lhe faltava assinar uns papéis e acompanhar o féretro ao crematório. Entregaram-lhe também uma pasta com documentos, em que verificou que a casa tinha sido posta no seu nome, e um molho chaves. Entre elas uma mais pequena que identificou de imediato de onde deveria ser. A mais importante para ele. Claro que apesar da proibição e da constante vigilância da mãe tinha entrado na salinha do pai. Que adolescente o não faria? Mas tinha encontrado apenas um pequeno aposento quase vazio, com excepção de um cadeirão, uma estante com uns poucos livros e um móvel com meia dúzia de objectos sem interesse. Neste último havia uma gaveta fechada à chave e que não tinha conseguido abrir. Em parte por falta de oportunidade, em parte por medo de estragar alguma coisa e ser descoberto. Ou talvez, apenas, por falta de interesse. Mas, com o tempo, tinha dado consigo a pensar cada vez mais naquela gaveta e no que ela poderia conter. Que segredo guardaria o pai? Por isso, assim que pôde, correu a casa do pai e entrou na salinha. Estava precisamente como se lembrava, apenas mais poeirenta. Dirigiu-se ao móvel e abriu a gaveta. Quando viu o que estava lá dentro não soube o que pensar. Ficou completamente aturdido. Numa completa confusão de sentimentos que iam da ternura à raiva. Tirou a gaveta do móvel e levou-a para cima da mesa de jantar, onde tinha mais luz. E, emocionado, começou a retirar, um a um, mais do que objectos, fragmentos da sua vida desde que nascera: uma chupeta, uma fralda, desenhos que tinha feito em diversas idades, brinquedos estropiados, um pião, o rapa, berlindes, um registo de todas as suas notas e actividades escolares, uma revista erótica que julgara que a mãe tinha descoberto e deitado para o lixo, algumas redações, fotografias que nem sabia que existiam, um teste psicotécnico, uma cópia da tese de mestrado...

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