Esta é a minha 100ª publicação no "escrita de bolso"
pelo que comemoro com o primeiro conto curto que escrevi,
há cerca de 30 anos, e que já foi publicado no "Jornal das Cortes"
Viagem
Fiz há alguns anos
uma viagem para uma pequena povoação do norte, à beira mar. Como nunca lá tinha
ido e não tinha a certeza do caminho saí cedo de casa e gozei a condução, o
sucessivo diminuir da largura das estradas, o progressivo desaparecimento de sinais
humanos na paisagem, à medida que me aproximava do destino. Fui perdendo também
a noção de onde me encontrava e, de repente, dei comigo numa pequena estrada de
terra que parecia não ter largura suficiente para o carro e onde os pneus
marcavam dois sulcos profundos no pó. Completamente perdido decidi seguir em
frente curioso sobre onde me levava aquela estrada. Continuei alguns quilómetros
entre pinhais até que a estrada acabou abruptamente junto ao mar. O dia estava
claro mas sem sol e tudo tinha um ar cinzento: o mar, o céu, a areia da imensa
praia, o pinhal denso atrás de mim. Nenhuma construção se avistava ali, nenhuma
viatura. No entanto, na praia, estava sentada uma mulher jovem, de cabelos
lisos pelos ombros, alourados, vestida com uns calções brancos e uma camisa
vermelha, que era a única nota colorida em toda a paisagem.
Saí do carro e fui
até junto da mulher sentada na areia e que, muito quieta, contemplava o mar.
Perguntei-lhe se conhecia o caminho para a aldeia para onde me dirigia. Só
nessa altura desviou os olhos para mim. Olhou-me com um olhar exactamente da
cor do mar, e nada respondeu. Repeti a pergunta uma e outra vez, mas a mulher
apenas me olhava. Depois falei-lhe em todas as línguas que sabia, que, de
repente, eram muitas, e sempre a mulher ficou muda, olhando para mim com olhos
de espelho. Quando me calei tornou a olhar o mar. Então sentei-me a olhá-la e
via o mar nos seus olhos.
Completamente
imóvel, os joelhos entre os braços, aquela mulher olhava o mar com um olhar
inquieto, que a todo o instante se movia com as ondas.
Não sei quanto
tempo ali fiquei a olhar aquela mulher que olhava o mar, mas sei que foram
muitas horas, imóveis, os dois, sentados sobre a areia da praia imensa e vazia.
A certa altura, não sei como, acordei daquele quase encantamento. Encaminhei-me
para o carro sem um adeus, sem lhe tocar, sem mais uma palavra. Virei o carro
para me ir embora e, quando entrei na estrada por onde tinha vindo, que era
aliás a única, espantei-me ao ver que não apresentava nenhuma marca de rodas.
Antes tinha o nítido aspecto, com as ervas a crescerem muito direitas sobre os
trilhos, de que já não passava ali ninguém há muito, muito tempo.
Uma excelente comemoração do teu 100º escrito, David, neste fantástico blogue.
ResponderEliminarGostei e dei comigo a invejar a tua capacidade para nos contares coisas que consegues tirar do bolso. Um grande abraço, Feliz Natal e tudo o mais que de melhor possas encontrar nesta tua viagem mágica que é escrever desta maneira encantatória.