David Teles Ferreira

aqui vou publicando o que vou escrevendo

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Viagem (100 ª publicação)



 Esta é a minha 100ª publicação no "escrita de bolso"  
pelo que comemoro com o primeiro conto curto que escrevi, 
há cerca de 30 anos, e que já foi publicado no "Jornal das Cortes"


 Viagem


Fiz há alguns anos uma viagem para uma pequena povoação do norte, à beira mar. Como nunca lá tinha ido e não tinha a certeza do caminho saí cedo de casa e gozei a condução, o sucessivo diminuir da largura das estradas, o progressivo desaparecimento de sinais humanos na paisagem, à medida que me aproximava do destino. Fui perdendo também a noção de onde me encontrava e, de repente, dei comigo numa pequena estrada de terra que parecia não ter largura suficiente para o carro e onde os pneus marcavam dois sulcos profundos no pó. Completamente perdido decidi seguir em frente curioso sobre onde me levava aquela estrada. Continuei alguns quilómetros entre pinhais até que a estrada acabou abruptamente junto ao mar. O dia estava claro mas sem sol e tudo tinha um ar cinzento: o mar, o céu, a areia da imensa praia, o pinhal denso atrás de mim. Nenhuma construção se avistava ali, nenhuma viatura. No entanto, na praia, estava sentada uma mulher jovem, de cabelos lisos pelos ombros, alourados, vestida com uns calções brancos e uma camisa vermelha, que era a única nota colorida em toda a paisagem.
Saí do carro e fui até junto da mulher sentada na areia e que, muito quieta, contemplava o mar. Perguntei-lhe se conhecia o caminho para a aldeia para onde me dirigia. Só nessa altura desviou os olhos para mim. Olhou-me com um olhar exactamente da cor do mar, e nada respondeu. Repeti a pergunta uma e outra vez, mas a mulher apenas me olhava. Depois falei-lhe em todas as línguas que sabia, que, de repente, eram muitas, e sempre a mulher ficou muda, olhando para mim com olhos de espelho. Quando me calei tornou a olhar o mar. Então sentei-me a olhá-la e via o mar nos seus olhos.
Completamente imóvel, os joelhos entre os braços, aquela mulher olhava o mar com um olhar inquieto, que a todo o instante se movia com as ondas.
Não sei quanto tempo ali fiquei a olhar aquela mulher que olhava o mar, mas sei que foram muitas horas, imóveis, os dois, sentados sobre a areia da praia imensa e vazia. A certa altura, não sei como, acordei daquele quase encantamento. Encaminhei-me para o carro sem um adeus, sem lhe tocar, sem mais uma palavra. Virei o carro para me ir embora e, quando entrei na estrada por onde tinha vindo, que era aliás a única, espantei-me ao ver que não apresentava nenhuma marca de rodas. Antes tinha o nítido aspecto, com as ervas a crescerem muito direitas sobre os trilhos, de que já não passava ali ninguém há muito, muito tempo.

1 comentário:

  1. Uma excelente comemoração do teu 100º escrito, David, neste fantástico blogue.
    Gostei e dei comigo a invejar a tua capacidade para nos contares coisas que consegues tirar do bolso. Um grande abraço, Feliz Natal e tudo o mais que de melhor possas encontrar nesta tua viagem mágica que é escrever desta maneira encantatória.

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